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O boticário esteve um instante a pensar, passando em revista os seus conhecimentos... |
II Havia já anos que o químico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela manhã, Bastos o viu entrar pela botica adentro. O prazer do farmacêutico foi imenso. O sábio não se dignara até aí visitar fosse quem fosse e, certo dia, quando o sacristão Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível enfado que ele o recebeu e atendeu. Vendo-o, Bastos saiu de detrás do balcão, correu a recebê-lo com a mais perfeita demonstração de quem sabia com quem tratava e foi quase em uma exclamação que disse: —Doutor, seja bem-vindo. O sábio pareceu não se surpreender nem com a demonstração de respeito do farmacêutico, nem com o tratamento universitário. Docemente, olhou um instante a armação cheia de medicamentos e respondeu: — Desejava falar-lhe em particular, Senhor Bastos. O espanto do farmacêutico foi grande. Em que poderia ele ser útil ao homem, cujo nome corria mundo e de quem os jornais falavam com tão acendrado respeito? Seria dinheiro? Talvez... Um atraso no pagamento das rendas, quem sabe? E foi conduzindo o químico para o interior da casa, sob o olhar espantado do aprendiz que, por um momento, deixou a "mão" descansar no gral, onde macerava uma tisana qualquer. Por fim, achou ao fundo, bem no fundo, o quartinho que lhe servia para exames médicos mais detidos ou para as pequenas operações, porque Bastos também operava. Sentaram-se e Flamel não tardou a expor: — Como o senhor deve saber, dedico-me à química, tenho mesmo um nome respeitado no mundo sábio... — Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado, aqui, aos meus amigos. — Obrigado. Pois bem: fiz uma grande descoberta, extraordinária... Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois continuou: — Uma descoberta... Mas não me convém, por ora, comunicar ao mundo sábio, compreende? — Perfeitamente. — Por isso precisava de três pessoas conceituadas que fossem testemunhas de uma experiência dela e me dessem um atestado em forma, para resguardar a prioridade da minha invenção... O senhor sabe: há acontecimentos imprevistos e... — Certamente! Não há dúvida! — Imagine o senhor que se trata de fazer ouro... — Como? O quê? fez Bastos, arregalando os olhos. — Sim! Ouro! disse, com firmeza, Flamel. — Como? — O senhor saberá, disse o químico secamente. A questão do momento são as pessoas que devem assistir à experiência, não acha? — Com certeza, é preciso que os seus direitos fiquem resguardados, porquanto... — Uma delas, interrompeu o sábio, é o senhor; as outras duas, o Senhor Bastos fará o favor de indicar-me. O boticário esteve um instante a pensar, passando em revista os seus conhecimentos e, ao fim de uns três minutos, perguntou: — O Coronel Bentes lhe serve? Conhece? — Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém aqui. — Posso garantir-lhe que é homem sério, rico e muito discreto. — E religioso? Faço-lhe esta pergunta, acrescentou Flamel logo, porque temos que lidar com ossos de defunto e só estes servem... — Qual! E quase ateu... — Bem! Aceito. E o outro? Bastos voltou a pensar e dessa vez demorou-se um pouco mais consultando a sua memória... Por fim, falou: — Será o Tenente Carvalhais, o coletor, conhece? — Como já lhe disse... — E verdade. E homem de confiança, sério, mas... — Que é que tem? — E maçom. — Melhor. — E quando é? — Domingo. Domingo, os três irão lá em casa assistir à experiência e espero que não me recusarão as suas firmas para autenticar a minha descoberta. — Está tratado. Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis de Tubiacanga foram à casa de Flamel, e, dias depois, misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígios ou explicação para o seu desaparecimento. |
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