ÀS VEZES, NABOR, O TAL DOS NABORES DE AZEVEDO E DOS BREVES ...



Às vezes, Nabor, o tal dos Nabores de Azevedo e dos Breves, honrados fabricantes de escravos, cortava alguma cousa de valia dos jornais do Rio e o jornaleco ficava literalmente esmagado ou inundado.

Dentro do jornal, reinava uma grande rivalidade latente entre o promotor e Nabor. Cada qual se julgava mais inteligente por decalcar ou pastichar melhor um autor em voga.

A mania de Nabor, na sua qualidade de profissional e jornalista moderno, era fazer de O Arauto um jornal de escåndalo; de altas reportagens sensacionais, de enquetes com notáveis personagens da localidade, enfim, um jornal moderno; a de Fagundes era a de fazê-lo um cotidiano doutrinário, sem demasias, sem escåndalos - um Jornal do Comércio de Sant'Ana dos Pescadores, a "Princesa" de "O Seio de Abraão", a mais formosa enseada do Estado do Rio.

Certa vez, aquele ocupou três colunas do grande órgão (e achou pouco), com a narração do naufrágio da canoa de pescaria - "Nossa Senhora do Ó", na praia da Mabombeba. Não morrera um só tripulante.

Fagundes censurou-lhe:

— Você está gastando papel à-toa!

Nabor retrucou-lhe:

— É assim que se procede no Rio com os naufrágios sensacionais. Demais: quantas colunas você gastou com o artigo sobre o direito de cavar "tariobas" nas praias.

— É uma questão de marinhas e acrescidos; é uma questão de direito.

Assim, viviam aparentemente em paz, mas, no fundo, em guerra surda.

Com o correr dos tempos, a rivalidade chegou ao auge e Nabor fez o que fez com Fagundes. Reclamou este e o descendente dos Breves respondeu-lhe:

— Os tipos são meus; a máquina é minha; portanto, o jornal é meu.

Fagundes consultou os seus manuais e concluiu que não tinha direito à sociedade do jornal, pois não havia instrumento de direito bastante hábil para prová-la em juízo; mas, de acordo com a lei e vários jurisconsultos notáveis, podia reclamar o seu direito aos honorários de redator-chefe, à razão de 1:800SOOO. Ele o havia sido quinze anos e quatro meses; tinha, portanto, direito a receber 324 contos, juros de mora e custas.

Quis propor a causa, mas viu que a taxa judicial ia muito além das suas posses. Abandonou o propósito; e Nabor, o tal dos Azevedo e dos Breves, um dos quais recebera a visita do imperador, numa das suas fazendas, na da Grama, ficou único dono do jornal.

Dono do grande órgão, tratou de modificar-lhe o feitio carrança que lhe imprimira o pastrana do Fagundes. Fez inquéritos com o sacristão da irmandade; atacou os abusos das autoridades da Capitania do Porto; propôs, a exemplo de Paris, etc., o estabelecimento do exame das amas-de-leite, etc., etc. Mas, nada disso deu retumbåncia a seu jornal. Certo dia, lendo a notícia de um grande incêndio no Rio, acudiu-lhe a idéia de que se houvesse um em Sant'Ana, podia publicar uma notícia de "escacha", no seu jornal, e esmagar o rival - O Baluarte - que era dirigido pelo promotor Fagundes, o antigo companheiro e inimigo. Como havia de ser? Ali, não havia incêndios, nem mesmo casuais. Esta palavra abriu-lhe um clarão na cabeça e completou-lhe a idéia. Resolveu pagar a alguém que atacasse fogo no palacete do doutor Gaspar, seu protetor, o melhor prédio da cidade. Mas, quem seria, se tentasse pagar a alguém? Mas... esse alguém se fosse descoberto denunciá-lo-ia, por certo. Não valia a pena... Uma idéia! Ele mesmo poria fogo no sábado, na véspera de sair o seu hebdomadário—O Arauto. Antes escreveria a longa notícia com todos os "ff" e "rr". Dito e feito. O palácio pegou fogo inteirinho no sábado, alta noite; e de manhã, a notícia saía bem feitinha. Fagundes, que já era Juiz Municipal, logo viu a criminalidade de Nabor. Arranjou-lhe uma denúncia-processo e o grande jornalista Salomão Nabor de Azevedo, descendente dos Azevedos, do Rio Claro, e dos Breves, reis da escravatura, foi parar na cadeia, pela sua estupidez e vaidade.

Revista Sousa Cruz, Rio, julho 1921.

Lima Barreto