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TRAVAMOS CONVERSA E MESMO A PROCUREI, PARA DECIFRAR TÃO INTERESSANTE ENIGMA.... |
Travamos conversa e mesmo a procurei, para decifrar tão interessante enigma. — Que diabo, Beiriz! Onde tens andado? Creio que há bem quinze anos que não nos vemos - não é? Onde andaste? — Ora! Por esse mundo de Cristo. A última vez que nos encontramos... Quando foi mesmo? — Quando eu ia embarcar para o interior do Estado do Rio, visitar a família. — E verdade! Tens boa memória... Despedimo-nos no Largo do Paço... Ias para Muruí - não é isso? — Exatamente. — Eu, logo em seguida, parti para o Recife a estudar direito. — Estiveste lá este tempo todo? — Não. Voltei para aqui, logo de dois anos passados lá. — Por quê? — Aborrecia-me aquela "chorumela" de direito... Aquela vida solta de estudantes de província não me agradava... São vaidosos... A sociedade lhes dá muita importåncia, daí... — Mas, que tinhas com isso? Fazias vida à parte... — Qual! Não era bem isso o que eu sentia... Estava era aborrecidíssimo com a natureza daqueles estudos... Queria outros.. . — E tentaste? — Tentar! Eu não tento; eu os faço... Voltei para o Rio a fim de estudar pintura. — Como não tentas, naturalmente... — Não acabei. Enfadou-me logo tudo aquilo da Escola de Belas-Artes. — Por quê? — Ora! Deram-me uns bonecos de gesso para copiar... Já viste que tolice? Copiar bonecos e pedaços de bonecos... Eu queria a cousa viva, a vida palpitante... — E preciso ir às fontes, começar pelo começo, disse eu sentenciosamente. — Qual! Isto é para toda gente... Eu vou de um salto; se erro, sou como o tigre diante do caçador - estou morto! — De forma que... — Foi o que me aconteceu com a pintura. Por causa dos tais bonecos, errei o salto e a abandonei. Fiz-me repórter, jornalista, dramaturgo, o diabo! Mas, em nenhuma dessas profissões dei-me bem... Todas elas me desgostavam... Nunca estava contente com o que fazia... Pensei, de mim para mim, que nenhuma delas era a da minha vocação e a do meu amor; e, como sou honesto intelectualmente, não tive nenhuma dor de coração em largá-las e ficar à-toa, vivendo ao deus-dará. — Isto durante muito tempo? — Algum. Conto-te o resto. Já me dispunha a experimentar o funcionalismo, quando, certo dia, descendo as escadas de uma secretaria, onde fui levar um pistolão, encontrei um parente afastado que as subia. Deu-me ele a notícia da morte do meu tio rico que me pagava colégio e, durante alguns anos, me dera pensão; mas, ultimamente, a tinha suspendido, devido, dizia ele, a eu não esquentar lugar, isto é, andar de escola em escola, de profissão em profissão. — Era solteiro esse seu tio? — Era, e, como já não tivesse mais pai (ele era irmão de meu pai), ficava sendo o seu único herdeiro, pois morreu sem testamento. Devido a isso e mais ulteriores ajustes com a Justiça, fiquei possuidor de cerca de duas centenas e meia de contos. — Um nababo! Hein? — De algum modo. Mas escuta. filho! Possuidor dessa fortuna, larguei-me para a Europa a viajar. Antes - é preciso que saibas - fundei aqui uma revista literária e artística - Vilhara - em que apresentei as minhas idéias budistas sobre a arte, apesar do que nela publiquei as cousas mais escatotógicas possíveis, poemetos ao suicídio, poemas em prosa à Venus Genitrix, junto com sonetos, cantos, glosas de cousas de livros de missa de meninas do colégio de Sion. —Tudo isto de tua pena? — Não. A minha teoria era uma e a da revista outra, mas publicava as cousas mais antagônicas a ela, porque eram dos amigos. — Durou muito a tua revista? — Seis números e custaram-me muito, pois até tricromias publiquei e hás de adivinhar que foram de quadros contrários ao meu ideal búdico. Imagina tu que até estampei uma reprodução dos "Horácios", do idiota do David! — Foi para encher, certamente? — Qual! A minha orientação nunca dominou a publicação... Bem! Vamos adiante. Embarquei quase como fugido deste país em que a estética transcendente da renúncia, do aniquilamento do desejo era tão singularmente traduzida em versos fesceninos e escatológicos e em quadros apologéticos da força da guerra. Fui-me embora! — Para onde? — Pretendia ficar em Lisboa, mas, em caminho, sobreveio uma tempestade;. e deu-me vontade, durante ela, de ir ao piano. Esperava que saísse o "bitu"; mas, qual não foi o meu espanto, quando de sob os meus dedos surgiu e ecoou todo o tremendo fenômeno meteorológico, toda a sua música terrível... Ah! Como me senti satisfeito! Tinha encontrado a minha vocação... Eu era músico! Poderia transportar, registrar no papel e reproduzi-los artisticamente, com os instrumentos adequados, todos os sons, até ali intraduzíveis pela arte, da Natureza. O bramido das grandes cachoeiras, o marulho soluçante das vagas, o ganido dos grandes ventos, o roncar divino do trovão, estalido do raio - todos esses ruídos, todos esses sons não seriam perdidos para a Arte; e, através do meu cérebro, seriam postos em música, idealizados transcendentalmente, a fim de mais fortemente, mais intimamente prender o homem à Natureza, sempre boa e sempre fecunda, vária e ondeante; mas... —Tu sabias música? — Não. Mas, continuei a viagem até Hamburgo, em cujo conservatória me matriculei. Não me dei bem nele, passei para o de Dresde, onde também não me dei bem. Procurei o de Munique, que não me agradou. Freqüentei o de Paris, o de Milão... — De modo que deves estar muito profundo em música? Calou-se meu amigo um pouco e logo respondeu: — Não. Nada sei, porque não encontrei um conservatório que prestasse. Logo que o encontre, fica certo que serei um músico extraordinário. Adeus, vou saltar. Adeus! Estimei ver-te. Saltou e tomou por uma rua transversal que não me pareceu ser a da sua residência. |
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