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IV Um dia, Serafina recebeu uma carta de Tavares ... |
IV Um dia, Serafina recebeu uma carta de Tavares dizendo-lhe que não voltaria mais à casa de seu pai, por este lhe haver mostrado má cara nas últimas vezes que ele lá estivera. Má cara é exageração de Tavares, cuja desconfiança era extrema e às vezes pueril; é certo que o desembargador não gostava dele, depois que soube das intenções com que ali ia, e é possível, é até certo que o seu modo afetuoso para com ele sofreu alguma diminuição. A fantasia de Tavares é que fez daquilo má cara. Eu aposto que o leitor, em caso igual, redobrava de atenções com o pai, a ver se lhe reconquistava as boas graças, e entretanto ia gozando a fortuna de ver e contemplar a dona dos seus pensamentos. Tavares não fez assim; tratou logo de romper as suas relações. Serafina sentiu sinceramente esta resolução do namorado. Escreveu-lhe dizendo que refletisse bem e voltasse atrás. Mas o namorado era homem teimoso; meteu os pés à parede, e não voltou. Jurar-lhe amor isso fez ele, e não deixava de lhe escrever todos os dias, cartas muito longas, muito repassadas de sentimento e de esperanças. João Aguiar soube do que se passara e procurou por sua vez dissuadi-lo da funesta resolução. Tudo foi baldado. - A desconfiança é o único defeito dele, dizia Serafina ao filho do comendador; mas é grande. - É um defeito bom e mau, observou João Aguiar. - Não é sempre mau. - Mas como não há criatura perfeita, é justo relevar-lhe esse único defeito. - Oh! de certo; contudo... - Contudo? - Preferia que o defeito fosse outro. - Outro qual? - Outro qualquer. A desconfiança é uma triste companheira; arreda toda a felicidade. - Eu a esse respeito, não tenho motivo de queixa... Cecília tem a virtude oposta num grau que me parece excessivo. Há nela um quê de simplória... - Oh! Aquele oh de Serafina foi como que um protesto e repreensão, mas acompanhado de um sorriso, não digo aprovador, mas benévolo. Defendia a moça ausente, mas talvez achasse que João Aguiar tinha razão. Dois dias depois adoeceu levemente o bacharel. A família do desembargador foi visitá-lo. Serafina escrevia-lhe todos os dias. Cecília, é Inútil dizê-lo, escrevia-lhe também. Mas havia uma diferença: Serafina escrevia melhor; havia mais sensibilidade na sua linguagem. Pelo menos, as cartas dela foram relidas mais vezes que as de Cecília. Quando ele se levantou da cama, estava bom fisicamente, mas recebeu um golpe na alma. Cecília ia para a roça durante dois meses; eram manias do pai. O comendador estimou este incidente, supondo que de uma vez para sempre o filho a esqueceria. O bacharel, entretanto, sentiu muito a separação. A separação efetuou-se daí a cinco dias. Cecília e João Aguiar escreveram um ao outro grandes protestos de amor. - Dois meses! dizia o bacharel da última vez que lhe falara. Dois meses é a eternidade... - Sim, mas havendo constância... - Oh! essa! - Essa havemos de tê-la ambos. Não te esqueças de mim, sim? - Juro. - Falarás de mim muitas vezes com Serafina? - Todos os dias. Cecília partiu. - Está muito triste? disse a filha do desembargador logo que nessa mesma tarde falou ao bacharel. - Naturalmente. - São apenas dois meses. - Fáceis de suportar. - Fáceis? - Sim, conversando com a senhora, que sabe tudo, e fala destas coisas de coração como senhora de espírito que é. - Sou um eco das suas palavras. - Quem dera que assim fosse! Eu poderia então ter vaidade de mim. João Aguiar disse estas palavras sem tirar os olhos da mão de Serafina, que mui graciosamente brincava com os cabelos. A mão de Serafina era realmente uma bela mão; nunca, porém, lhe pareceu mais bela do que naquele dia, nem ela a movera nunca com tamanha graça. Nessa noite João Aguiar sonhou com a mão da filha do desembargador. Que lhe havia de pintar a fantasia? Imaginou estar no alto das nuvens, a olhar pasmado o céu azul, donde viu repentina mente sair uma mão alva e delicada, a mão de Serafina, que se estendia para ele, que lhe acenava, que o chamava para o céu. Riu-se João Aguiar deste singular sonho e foi contá-lo no dia seguinte à proprietária da mão. Também ela riu do sonho; mas tanto ele como ela pareciam estar convencidos lá no seu interior que a mão era efetivamente angélica e era natural vê-la em sonhos. Quando ele se despediu: - Não vá sonhar outra vez com ela, disse a moça estendendo a mão ao bacharel. - Não desejo outra coisa. Não sonhou outra vez com a mão, mas pensou muito nela e dormiu tarde. No dia seguinte para se castigar desta preocupação, escreveu uma longa carta a Cecília falando muito de seu amor e dos projetos de futuro. Cecília recebeu a carta cheia de contentamento, porque muito tempo havia já que ele não escrevia carta tão longa. A resposta dela foi ainda mais comprida. Um período da carta convém ser transcrito aqui: Dizia assim: "Se eu fosse ciumenta... se eu fosse desconfiada... havia de te dizer agora muito duras coisas. Mas não digo, descansa; amo-te e sei que me amas. Mas por que havia eu de dizer duras coisas? Porque nada menos de quatorze vezes falas no nome de Serafina. Quatorze vezes! Mas são quatorze vezes em quatorze páginas, que são todas minhas". João Aguiar não se lembrava de haver escrito tanta vez o nome da filha do desembargador; lembrava-se, porém, de haver pensado muito nela enquanto escrevia a carta. Felizmente nada mau resultara, e o jovem namorado achou que ela tinha razão na queixa. Nem por isso deixou de mostrar o trecho acusador à namorada do Tavares, que sorriu e agradeceu a confiança. Mas foi um agradecimento com a voz trêmula e um sorriso de íntima satisfação. Parece que as quatorze páginas deviam servir para longo tempo, porque a seguinte carta foi apenas de duas e meia. A moça queixou-se, mas com brandura, e concluiu pedindo-lhe que fosse vê-la à roça, ao menos por dois dias, visto que o pai resolvera lá ficar mais quatro meses, além do prazo marcado para a volta. Era difícil ao filho do comendador ir lá ter sem oposição do pai. Imaginou porém um meio bom; inventou um cliente e um processo, ambos os quais o digno comendador engoliu, cheio de satisfação. João Aguiar partiu para a roça. Ia por dois dias apenas; os dois dias correm nas delícias que o leitor pode imaginar, mas com uma sombra, uma coisa inexplicável. João Aguiar, ou porque aborrecesse a roça ou porque amasse demais a cidade, sentia-se um pouco tolhido ou não sei que seja. No fim de dois dias desejava ver-se outra vez no bulício da corte. Felizmente, Cecília procurava compensar-lhe os tédios do lugar, mas parece que era excessiva nas mostras de amor que lhe dava, pois o digno bacharel dava sinais de impaciência. - Serafina tem mais comedimento, dizia ele. No quarto dia escreveu uma carta à filha do desembargador, que lhe respondeu com outra, e se eu disser à leitora que tanto um como outro beijaram as cartas recebidas, a leitora verá que a história se aproxima do fim e que a catástrofe está próxima. Catástrofe, na verdade, e terrível foi a descoberta que tanto o bacharel como a filha do desembargador fizeram de que se amavam e já de longos dias. Foi principalmente a ausência que lhes confirmou a descoberta. Os dois confidentes aceitaram esta novidade um pouco perplexos, mas muito contentes. A alegria era travada de remorso. Havia dois embaçados, a quem eles fizeram grandes protestos e juramentos repetidos. João Aguiar não resistiu ao novo impulso do coração. A imagem da moça, sempre presente, fazia-lhe tudo cor-de-rosa. Serafina, porém, resistiu; a dor que ia causar no ânimo de Tavares deu-lhe forças para calar o seu próprio coração. Em conseqüência disto, começou a evitar toda a ocasião de encontro com o jovem bacharel. Isto e lançar lenha ao fogo era a mesma coisa. João Aguiar sentiu um obstáculo com que não contava, o amor cresceu-lhe e apoderou-se dele. Não contava com o tempo e o coração da moça. A resistência de Serafina durou o que duram as resistências de quem ama. Serafina amava; no fim de quinze dias abateu as armas. Tavares e Cecília estavam vencidos. Eu desisto de dizer ao leitor o abalo produzido naquelas duas almas pela ingratidão e perfídia dos dois felizes namorados. Tavares enfureceu-se e Cecília definhou longo tempo; afinal Cecília casou e Tavares está diretor de companhia. Não há dor eterna. - Bem dizia eu! exclamou o comendador quando o filho lhe impetrou licença para ir pedir a mão de Serafina. Bem dizia eu que vocês deviam casar! Custou muito! - Alguma coisa. - Mas agora? - Definitivo. Casaram-se há alguns anos aqueles dois confidentes. Recusaram fazer à força aquilo que o coração lhes indicou depois. Há de ser duradouro o casamento. |
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