Tal era a situação do espírito e do coração de Cecília quando ...



Tal era a situação do espírito e do coração de Cecília quando o relógio de uma igreja que ficava a dois passos da casa bateu meia noite. O som lúgubre do sino, o silêncio da noite, a solidão em que estava, deram uma cor mais sombria às suas apreensões.

Procurou dormir para fugir às idéias sombrias que se lhe atropelavam no espírito e dar descanso ao peso e ao ardor que sentia no cérebro; mas não pôde; caiu em uma dessas insônias que fazem padecer mais em uma noite do que a febre de um dia inteiro.

De repente sentiu que se abria a porta. Olhou e viu entrar uma figura desconhecida, fantástica. Era mulher? era homem? não se distinguia. Tinha esse aspecto masculino e feminino a um tempo com que os pintores reproduzem as feições dos serafins. Vestia túnica de tecido alvo, coroava a fronte com rosas brancas e despedia dos olhos uma irradiação fantástica e impossível de descrever. Andava sem que a esteira do chão rangesse sob os passos. Cecília fitou os olhos na visão e não pôde mais desviá-los. A visão chegou-se ao leito da donzela.

- Quem és tu? perguntou Cecília sorrindo, com a alma tranqüila e os olhos vivos e alegres diante da figura desconhecida.

- Sou o anjo das donzelas, respondeu a visão com uma voz que nem era voz nem música, mas um som que se aproximava de ambas as coisas, articulando palavras como se executasse uma sinfonia do outro mundo.

- Que me queres?

- Venho em teu auxílio.

- Para que?

O anjo pôs as mãos no peito de Cecília e respondeu:

- Para salvar-te.

- Ah!

- Sou o anjo das donzelas, continuou a visão, isto é, o anjo que protege as mulheres que atravessam a vida sem amar, sem depor no altar dos amores uma só gota do óleo celeste com que se venera o deus menino.

- Sim?

- É verdade. Queres que eu te proteja? Que te imprima na fronte o sinal fatídico ante o qual recuarão todas as tentativas, curvar-se-ão todos os respeitos?

- Quero.

- Queres que com um bafejo meu te fique eternamente gravado o emblema da eterna virgindade?

- Quero.

- Queres que eu te garanta em vida as palmas verdes e viçosas que cabem às que podem atravessar o lodo da vida sem salpicar o vestido branco de pureza que receberam do berço?

- Quero.

- Prometes que nunca, nunca, nunca te arrependerás deste pacto, e que, quaisquer que sejam as contingências da vida, abençoarás a tua solidão?

- Quero.

- Pois bem! Estás livre, donzela, estás inteiramente livre das paixões. Podes entrar agora, como Daniel, entre os leões ferozes; nada te fará mal. Vê bem; é a felicidade, é o descanso. Gozarás ainda na mais remota velhice de uma isenção que será a tua paz na terra e a tua paz no céu!

E dizendo isto a fantástica criatura desfolhou algumas rosas sobre o seio de Cecília. Depois tirou do dedo um anel e introduziu no dedo da moça, que não opunha a nenhum destes atos, nem resistência nem admiração, antes sorria com um sorriso de Angélica suavidade como se naquele momento entrevisse as glórias perenes que o anjo lhe prometia.

- Este anel, disse o anjo, é o anel de nossa aliança; doravante és minha esposa ante a eternidade. Deste amor não te resultarão nem tormentos nem catástrofes. Conserva este anel a despeito de tudo. No dia em que o perderes, estás perdida.

E dizendo estas palavras a visão desapareceu.

A alcova ficou cheia de uma luz mágica e de um perfume que parecia mesmo hálito de anjos.

No dia seguinte Cecília acordou com o anel no dedo e a consciência do que se passara na véspera. Nesse dia levantou-se da cama mais alegre que nunca. Tinha o coração leve e o espírito desassombrado. Tocara enfim o alvo que procurara: a indiferença para os amores, a certeza de não estar exposta às catástrofes do coração... Esta mudança tornou-se cada dia mais pronunciada, e de modo tal que as amigas não deixaram de reparar.

- Que tens tu? dizia uma. És outra inteiramente. Aqui anda namoro!

- Qual namoro!

- Ora, decerto! acrescentava outra.

- Namoro? perguntava Cecília. Isso é bom para as... infelizes. Não para mim. Não amo...

- Amas!

- Nem amarei.

- Vaidosa!...

- Feliz é que deves dizer. Não amo, é verdade. Mas que felicidade não me resulta disto?... Posso afrontar tudo; estou armada de broquel e cota de armas...

- Sim?

E as amigas desataram a rir, apontando para Cecília e jurando que ela se havia de arrepender de dizer palavras tais.