Quando se esgotou esse capítulo, Tibúrcio referiu que uma vez fora agarrado pelos bugres ...



Quando se esgotou esse capítulo, Tibúrcio referiu que uma vez fora agarrado pelos bugres perto do rio Araguaia. Quando caiu nas mãos daqueles bárbaros perdeu até a última gota de sangue. Viu a morte diante dos olhos. Já os bugres se preparavam para almoçar aquele bife, quando uma partida de soldados que andava à caça de um criminoso descobriu o fato e chegou a tempo de salvar Tibúrcio dos estômagos indígenas.

Outros perigos correra o primo de Cecília, como o de naufragar em torrentes de rios, encontrar-se com onças, e outros deste gênero.

O auditório habitual de Tibúrcio divertia-se muito com estas narrações, e ele por sua parte sabia referir os tais episódios dando-lhes as cores próprias de comover e interessar.

Tibúrcio resolvera ir morar com as duas parentas, e ali se instalou imediatamente.

Todas as noites havia uma reunião de amigos para tomar chá, conversar e jogar.

Uma noite de chuva, em mês de junho, debalde se esperaram os convivas. A chuva e o frio não consentiram que os respeitáveis anciões deixassem os conchegos do lar, nem mesmo com a sedução das boas horas que se passava em casa de Cecília.

Foram, pois, os três parentes obrigados a se privarem naquela noite da companhia dos amigos.

Tomaram chá cedo e estavam fazendo horas à mesa até que viesse a hora habitual de se recolherem.

Travou-se a seguinte conversação:

- Ora, prima, disse Tibúrcio, ainda não lhe contei os tormentos que sofri relativamente ao coração.

- Ah!

- É verdade. Lembrei-me muito de você.

- Deveras?

- É verdade. Não se lembra que eu mais de uma vez lhe confessei o amor que alimentava?

- Lembro-me, sim.

- Pois sai da corte com as mais dolorosas impressões. Via que ia para longe e perdia de vista a mulher que eu ainda nem conhecia de coração. Padeci muito.

- Falar nisso agora não sei que me parece.

- Parece o que é, a verdade. Quis matar-me...

- Que tolice!

- Foi o que eu pensei...

- Morria e eu ficava.

- Mas o que me agrada é ver que se eu não esqueci, também você não esqueceu.

- Não, decerto.

- Mas, de certo modo?

- Que modo?

- Gentes! disse a prima viúva. Vocês parecem namorados!

- Mas de que modo? como apaixonada?

- Sim.

- Que loucura!

- Pelo menos tenho uma prova.

- Vamos ver a prova, disse a viúva.

- A prova não está comigo.

- Está comigo? perguntou Cecília.

- É verdade.

- Onde?

- Aí, no dedo.

Cecília olhou para o anel.

- No dedo! disse ela sem compreender a que podia o primo aludir.

- Esse anel, disse o primo.

- Este anel? Que tem este anel?

- Ora, afinal, disse a prima viúva, vamos saber o que significa este misterioso anel.

Cecília estava espantada sem compreender.

Tibúrcio continuou:

- Este anel, sim. É meu. Ou por outra, é seu hoje, mas foi meu, porque o encomendei.

- Mas explique-se.

- Nas vésperas de partir da corte quis deixar-lhe uma prova de que o meu amor era verdadeiro e seria eterno. Encomendei este anel, que o ourives prontificou com o maior cuidado e zelo. Tinha dois meios de dar-lho: ou introduzir-lho no dedo, francamente, com a declaração de que era uma lembrança minha que deixara, ou depositá-lo no seu toucador para que, quando eu já estivesse fora, aquela lembrança a surpreendesse.

- É romanesco, disse a viúva.

Cecília nada disse. Tinha os olhos pregados em Tibúrcio e procurava arrancar-lhe as palavras da boca.

Tibúrcio prosseguiu:

- Preferi o segundo meio por me parecer, como diz a prima, romanesco. Mas, ao executá-lo, ocorreu-me um terceiro meio. Era o de colocar o anel no seu dedo na hora em que dormisse, de modo que a surpresa fosse ainda maior.

- Ah! e...

Esta exclamação e esta conjunção partiram da prima viúva. Cecília tão absorta estava que nada podia dizer.

- Descansem, disse Tibúrcio, eu fiz as coisas honestamente. Peitei a mucama para que alta noite, na ocasião em que a prima dormisse depois da costumada leitura... Ah! você lia muito romance!

- Adiante!

- Para que alta noite se aproveitasse do sono em que você estivesse e lhe pusesse o anel. Assim foi. Vejo agora que conservou o anel. Mas, diga-me, a Teresa nunca lhe disse nada disto?

- Não, disse Cecília distraidamente.

- Pois foi assim. E se quer mais uma prova tire o anel... Nunca o tirou?

- Nunca.

- Pois tire o anel e veja se não estão gravadas pela parte interior as iniciais do meu nome.

Cecília hesitou entre a curiosidade de averiguar a asseveração de Tibúrcio e um resto de crença que tinha nas palavras da visão.

- Tire o anel.

- Mas...

- Tire! Que receio é esse?

- Esperem, não tiro por uma razão. Eu não creio no que diz o primo Tibúrcio.

- Por que?

- Não creio, mas creio em outra coisa.

- Essa agora!

- É verdade.

E Cecília passou a referir aos dois parentes todas as circunstâncias da visão, o diálogo que tivera com ela, a fé em que lhe ficaram as promessas do anjo das donzelas.

- Tal foi, acrescentou Cecília, a razão porque me não casei. Tinha fé nisto. Quanto a tirar o anel, disse-me a visão que nunca o fizesse.

Tibúrcio deu uma gargalhada.

- Ora, prima, disse ele, pois você quer contestar uma verdade com uma superstição? Ainda acredita em sonhos!

- Como, sonhos?

- É evidente. Isso da visão não passou de um sonho. Coincidiu o sonho com o fato do anel. Mas você quando acordou no dia seguinte achou-se com um anel no dedo, não devia fazer outra coisa mais do que averiguar a razão do fenômeno, e não dar crédito a uma coisa toda de imaginação.

Cecília abanou a cabeça.

- Pois não crê? Tire o anel.

Cecília hesitava. Mas Tibúrcio usou da arma do ridículo, no que foi acompanhado pela prima viúva de modo que Cecília, com alguma relutância, pálida e trêmula, arrancou o anel do dedo.

O anel tinha na parte interna gravadas estas iniciais: T. B.

Machado de Assis