Dona Angélica tinha muitas razões para patrocinar os amores da filha ...



Dona Angélica tinha muitas razões para patrocinar os amores da filha e do sobrinho  Bem sabia ela que João das Mercês não tinha herança nem emprego; mas em compensação Marianinha tinha uma perna mais curta que a outra. Arranjado o rapaz, bem se lhe podia dar a pequena e tudo ficava em casa.

Gaspar aprovou todas as decisões da mulher, com tanta maior benevolência, quanto que, se as não aprovasse, seria a mesma coisa.  Durante vinte anos de casamento, não constava que Gaspar tivesse jamais iniciado alguma coisa em casa, nem sequer desaprovado a mulher. Dona Angélica teve sempre o comando do exército doméstico, e devo acrescentar com a fidelidade de um romancista sincero que dona Angélica exercia esse comando com uma severidade digna de um general.

A boa velha era caprichosa; o marido era o tipo da obediência. Um dia acordou dona Angélica com a idéia de que o esposo devia usar suíças. Gaspar que trazia a barba toda, desde que ela achou que era a única moda respeitável, ia ao barbeiro e punha abaixo metade do pêlo. Dois meses depois, Angélica adotava o sistema dos bigodes, por se ter namorado de um retrato de Napoleão III. O marido voltava para casa com uma faixa de soldado francês. Suspeitava-se que o corte das calças inexplicáveis de Gaspar era produção de dona Angélica.

Aqui temos, em duas palavras, a nova família de João das Mercês  Sabendo com que amor o tratavam, o nosso João imaginou que ia levar uma vida regalada. Infelizmente foi ilusão que durou pouco. Dona Angélica disse um dia à mesa que era preciso arranjar algum emprego para o sobrinho.  Gaspar não se fez esperar. Foi dali a um cavalheiro com que andara na escola e que ocupava então o lugar de ministro da guerra. Pediu-lhe um emprego. Gaspar foi notável durante toda a sua vida pelo aferro com que sempre acompanhara o ministério atual.  Obteve o emprego.

João das Mercês obedeceu à intimação da sua tia e foi ocupar o lugar no arsenal de guerra, tendo obtido antes consentimento do pai.

Marianinha amava o primo, com toda a força de seus quinze anos. Era uma rapariga assaz bonita, assaz faceira, dotada de um excelente coração. João das Mercês que era estouvado e mal educado não deixava de ter igualmente uni coração digno de apreço. Amavam-se estas duas criaturas com o aferro de um primeiro amor.  Dona Angélica alimentava esta chama, que segundo ela, devia ser legitimada na igreja.

João das Mercês também nutria essas esperanças; e tratava de as comunicar à prima.

- Quando formos casados, dizia ele, havemos de ser felizes.

- Casados?

- Sim.

- Quando há de ser?

- Um dia, quando eu tiver mais idade.

- Ah! se fosse já!

Gaspar ouviu um dia esta conversa, e não se pôde ter de furor.

- Casar! exclamou ele; pois vocês já falam em casar? Onde é que se viu isto? Que diria tua mãe, quando souber que já a minha filha fala em casamento? E tu meu pirralho, que idéias andas metendo na cabeça de tua prima? Ora esperem!

Marianinha tremia; João murmurava uma resposta ao tio, quando este chegando-se à porta gritou para dentro:

- Oh! senhora dona Angélica!

- Que temos? gritou de dentro a esposa de Gaspar.

- Queira vir até cá, respondeu o marido com voz macia.

- Não me faltava mais nada! venha cá você.

Gaspar fez um gesto de ameaça aos pequenos e foi ter com a mulher a que expôs o que acabava de ouvir.

- E que tem você com isso? disse-lhe a mulher. Se os pequenos gostam um do outro, fazem muito bem; e eu até estimo isso, porque já andava com idéias de os unir. Você veio atrapalhar tudo; ora vai, vai tranqüilizar os pequenos.

Gaspar engoliu dificilmente a pílula. Atravessou o corredor como se passasse pelas forças caudinas; e voltou à sala onde os namorados tremiam pelo desfecho da cena.

- O amor, meus filhos, disse ele, é uma coisa santa, se vocês se amam com seriedade, sou o primeiro a aprovar esse sentimento que nos eleva aos nossos próprios olhos; o que eu combato, e que todos os bons pais devem combater, é o namoro sem fim, o passatempo indigno de jovens bem formados. Quando eu e a respeitável dona Angélica (aqui levantou muito a voz) nos amamos foi...

- Deixe-se de estar contando essas coisas aos pequenos, clamou de dentro a senhora dona Angélica.

- Foi seriamente, continuou Gaspar em voz baixa.

Tudo favorecia os amores de João das Mercês; mas ele não contava com o destino.

André das Mercês, pai do nosso João, arrependeu-se um dia de ter posto o filho fora de casa, e foi ter com  a irmã para obter a volta de João das Mercês. Dona Angélica opôs-se vivamente à saída do sobrinho. Disse francamente ao irmão que o seu projeto era insensato; que, já que tinha praticado um erro, devia agüentar com todas as conseqüências dele.

André era tão esturrado como a irmã; respondeu-lhe rispidamente; ela insistiu; insistiu; e depois de uma longa discussão em que ambos mostraram toda a solidez da respectiva língua, saiu André disposto a proceder violentamente.

Em caminho refletiu que não era conveniente dar um escândalo, e que podia alcançar tudo por bons modos.

- Talvez ela hoje estivesse de mau humor, pensou ele.

Encontrou o cunhado e expôs-lhe a questão.

- Meu amigo, disse-lhe Gaspar, eu aprovo o procedimento de minha mulher, sem deixar de aprovar as suas louváveis intenções.

- Louváveis, tem razão, acudiu André; o que eu quero é receber meu filho em casa. Assiste-me o direito...

- Não contesto.

- A mana está teimosa; mas se você intervier, pode ser que eu consiga alguma coisa...

- Acha então que eu...

- Sem dúvida, venha comigo.

- Vamos.  Minha mulher atende muito ao que eu digo. Com duas palavras minhas estou que arranjarei tudo. O caso é que o senhor não estrague tudo com as suas insistências...  Deixe-me falar só.

- Estou por tudo; eu não desejo brigar com ela.

- Está visto. O que se quer é fazer-lhe ouvir a razão.  Sabe o que são senhoras; caprichosas, intolerantes; mas deixe-me, eu farei tudo... Espere-me aqui um bocadinho, que eu vou ali à esquina comprar rapé, que tenho a caixa vazia.

- Eu vou também.

- Não; deixe-me ir só; o homem não gosta de vender rapé à vista de gente. São três minutos.

Gaspar voltou a esquina e meteu-se em um  corredor. André, depois de passear perto de um quarto de hora, foi à esquina e perguntou no armarinho pelo cunhado.

- Aqui só veio um preto comprar uma vela de cera, respondeu o caixeiro.