Sílvia era realmente bela no sentido amplo e elevado da palavra ...



Sílvia era realmente bela no sentido amplo e elevado da palavra. Vinha à mente a idéia de Cleópatra, era um duplo efeito que o aspecto da moça produzira no espírito e nos sentidos. Quem amasse aquela moça desejaria que, como a Antônio, fosse trasladado para a campa o leito nupcial da vida; ela devia inspirar uma como que voluptuosidade ainda depois da morte.

Devo dizer, em honra de Teófilo, que a impressão produzida no moço não tinha esse caráter. O espírito do poeta só via e sentia o que havia de puro e adorável na mulher.

Sílvia era um tanto pálida, não dessa fria palidez de cera que não comove. Tinha a testa arredondada e polida, os olhos negros, profundos, rasgados, desferindo um olhar penetrante; um nariz ligeiramente aquilino, servindo de base a duas sobrancelhas arcadas, bastas e negras; a boca, graciosa e pequena, abria-se em dois lábios demasiadamente rosados, úmidos, voluptuosos; um pescoço perfeitamente contornado ligava a cabeça aos ombros e fazia descer o olhar fascinado para o colo e para as espáduas, nus até onde consentiam a vaidade e o decoro. Sobre aquele colo ideal fulgia uma pequena cruz de brilhantes em completa oscilação pelo arfar do seio.

Sílvia vestia com simplicidade e gosto, mas via-se nos maiores enfeites, como nos menores gestos, a consciência da beleza que procurava realçar o que recebeu do céu com o auxílio do que se inventou na terra.

Teófilo não podia desviar os olhos de Sílvia. O espírito do poeta sentia-se tomado de uma ebriedade celeste diante daquela beleza fascinante. Era o filtro mágico do amor que se lhe entornava nos olhos.

Até então o poeta conhecera a beleza pelo que a imaginação lhe figurava. Esta beleza estava ali, diante dele, palpável, visível, deslumbrante.

Sílvia conheceu o efeito que causara em Teófilo, ou antes supôs que ele não podia fugir à lei comum dos outros homens que a cercavam. Fitou um olhar fascinante no poeta, e depois retirou os olhos para dirigir a palavra à dona da casa.

Augusto esperou que a moca acabasse de falar, para interpor uma petição. Era a petição de ser contemplado entre os cavalheiros que deviam merecer a honra de acompanhá-la à dança. Sílvia deu-lhe uma quadrilha. Augusto intercedeu por Teófilo, e Teófilo obteve uma valsa.

Depois os dois moços separaram-se.

- É bela, não? perguntou ao poeta.

- Esplêndida! murmurou este.

Teófilo sentiu-se outro. Parecia-lhe que estava próximo a entrar na estância da felicidade. Era simples amava. O amor nasceu-lhe de súbito, como acontece quando é verdadeiro.

Quando chegou a vez da sua valsa, o nosso poeta estremeceu. Dirigiu-se para a moça. Sentia-se estranhamente comovido, e por duas vezes esteve para recuar e sair. Enfim Sílvia deu com os olhos no poeta, e era impossível escapar.

Sílvia era valsista consumada. Quando Teófilo sentiu palpitar junto a si aquele seio, e respirou o ambiente estranho que cercava aquela singular criatura, o coração palpitou-lhe mais forte; parecia-lhe um sonho. Que valsa foi aquela? Não foi valsa, foi delírio, delírio de poeta, delírio de fantasia escaldada.

Augusto acompanhou o par com os olhos e reparou na mudança que se operava em Teófilo. Quando pôde conversar com este interrogou-o acerca da impressão que lhe causava Sílvia.

- Aposto que estás apaixonado?

Teófilo olhou para ele silenciosamente e respondeu:

- Não!

Augusto insistiu.

- Queres conhecer o pai? É o conselheiro C...

Augusto apresentou Teófilo ao pai de Sílvia. Uma conversa de poucos minutos decidiu as simpatias do conselheiro pelo poeta. Teófilo saíra dos seus hábitos de extrema reserva e mostrou-se tão discreto quanto agradável. O conselheiro ofereceu os seus serviços a Teófilo.

Esta noite fez uma revolução na vida e no espírito de Teófilo. O poeta encontrara o seu ideal. Mas por que foi achá-lo tão alto? Esta pergunta foi feita ao poeta quando se achou a sós no gabinete de trabalho. Só então medira a distância que existia entre ele e Sílvia. Se o amor, a natureza, a lei divina, podiam aproximá-los, o preconceito social e a lei humana separavam-nos.

O poeta dormiu pouco e tarde. Antes, porém, de procurar o leito, traduziu na linguagem das musas as impressões de que estava possuído. Foi uma das suas poesias mais veementes. Era a um tempo um cântico e uma elegia. No cântico dizia como a encontrara e amara a beleza; na elegia chorava o infortúnio de tê-la visto tão elevada e ser impossível subir até ela.

- Impossível? pensava Teófilo na manhã seguinte relendo os versos. Não. Basta que ela me ame para que tudo desapareça. Que nos importará o resto?

Teófilo freqüentou a casa do conselheiro. Augusto, a quem Teófilo fez apenas meia confidência, servia de cicerone ao tímido amador.

Sílvia, com esse tato delicado das mulheres, reconheceu que era amada pelo poeta, e, longe de procurar dissuadi-lo, animou-o. Esta animação levou ao espírito do poeta a esperança de ser amado.

Todavia os meios empregados por Sílvia não comprometiam nada no futuro. Podiam dar esperanças, não podiam obrigar. Teófilo não reconheceu essa diferença; amava; tomava o mais insignificante olhar como um jubileu de venturas. Vivia dela, por ela, para ela.

Um dia Teófilo sentiu que não podia mais conter no coração o segredo do seu amor. Na amizade confia-se um segredo, diz La Bruyère, mas no amor o segredo escapa. É o que sucedeu a Teófilo.

Achava-se a sós com Sílvia. O conselheiro estava no gabinete em consulta de política, não de política militante, mas de política observadora; entendia o conselheiro que a situação caminhava mal; o amigo entendia que não. Sabe-se como estas discussões consomem tempo. Teófilo estava seguro de não ser perturbado.

Sílvia cantava ao piano a cavatina do 1.º ato do Trovador. Teófilo a dois passos ouvia enlevado aquelas notas que Sílvia reproduzia como saídas da alma. Tudo lhe esquecia: receios, temores, desconfianças do mundo. Parecia-lhe que era o senhor daquela mulher e daquele coração, e deixava-se embalar na doce ilusão da sua fantasia e do seu amor.

Sílvia, quando acabou, voltou o rosto e deu com os olhos em Teófilo. Depois, tomando de sobre o piano o leque de penas que ali depusera, levantou-se e dirigiu-se para o sofá onde estava Teófilo.

- Gostou? perguntou ela.

- Muito, disse o poeta adoçando a voz como se respondesse a um anjo.

Sílvia sentou-se em uma cadeira que ficava ao pé do sofá.

Teófilo fitou os olhos em Sílvia.