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Machado de Assis UMA POR OUTRA |
Era por sessenta e tantos... Musa, lembra-me as causas desta paixão romântica, conta as suas fases e o seu desfecho. Não fales em verso, posto que nesse tempo escrevi muitos. Não; a prosa basta, desataviada, sem céus azuis nem garças brancas, a prosa do tabelião que sou neste município do Ceará. Era no Rio de Janeiro. Tinha eu vinte anos feitos e mal feitos, sem alegrias, longe dos meus, no pobre sótão de estudante à rua da Misericórdia. Certamente a vida do estudante de matemáticas era alegre, e as minhas ambições, depois do café e do cigarro, não iam além de um e outro teatro, mas foi isto mesmo que me deitou "uma gota amarga na existência". É a frase-textual que escrevi em uma espécie de diário daquele tempo, rasgado anos depois. Foi no teatro que vi uma criaturinha bela e rica, toda sedas e jóias, com o braço pousado na borda do camarote, e o binóculo na mão. Eu, das galerias onde estava, dei com a pequena e gostei do gesto. No fim do primeiro ato, quando se levantou, gostei da figura. E dai em diante, até o fim do espetáculo, não tive olhos para mais ninguém, nem para mais nada: todo eu era ela. Se estivesse com outros colegas, como costumava, é provável que não gastasse mais de dois minutos com a pequena; mas naquela noite estava só, entre pessoas estranhas, e inspirado. Ao jantar, fizera de cabeça um soneto. Demais, antes de subir à galeria quedara-me à porta do teatro a ver entrar as famílias. A procissão de mulheres, a atmosfera de cheiros, a constelação de pedrarias entonteceram-me. Finalmente, acabava de ler um dos romances aristocráticos de Feuillet, exemplar comprado por um cruzado em não sei em que belchior de livros. Foi nesse estado de alma que descobri aquela moça do quinto camarote, primeira ordem, à esquerda, teatro lírico. Antes de acabar o espetáculo, desci a escada, quatro a quatro, e vim colocar-me no corredor, defronte do camarote de Sílvia. Dei-lhe este nome por ser doce, e por havê-lo lido não sei onde. Silvia apareceu à porta do camarote, logo depois de cantada a ópera, metida em capa rica de cachemira, e com uns olhos que eu não pudera ver bem de cima, e valiam, só por si, todas as jóias e todas as luzes do teatro. Outra senhora estava com ela, e dois homens também; deram-lhes os braços, e eu acompanhei-as logo. A marcha foi lenta, eu desejava que não acabasse mais, mas acabou. Silvia entrou no carro que esperava a família, e os cavalos pegaram do meu tesouro e o levaram atrás de si. Nessa mesma noite escrevi os meus versos - A visão. Dormi mal e acordei cedo. Abri a janela do sótão, e a luz que entrou no meu pobre aposento, ainda mais aumentou o meu delírio da véspera. Comparei as minhas alfaias de estudante com as sedas, cachemiras, jóias e cavalos de Sílvia, e compus umas sextilhas que não transcrevo aqui para não dar ciúmes à minha tabelioa, a quem já as recitei, dizendo que não prestavam para nada. E creio que não. Se as citasse não seria mais que por veracidade e modéstia, mas prefiro a paz doméstica ao complemento do escrito. Em verdade, não há negar que por esses dias andei tonto. Não seria exatamente por aquela moça do teatro, mas por todas as outras da mesma condição e de iguais atavios. Tornei ao teatro dali a dias, e vi-a, em outro camarote, com igual luxo e a mesma graça fina. Os meus companheiros de escola não me permitiram fitá-la exclusivamente: mas como deveras amavam a música, e a ouviam sem mais nada, eu aproveitava os melhores trechos da ópera para mirar a minha incógnita. - Quem é aquela moça? perguntei a um deles, à saída do saguão. - Não sei. Ninguém me disse nada, não a encontrei mais, nem na rua do Ouvidor, nem nos bairros elegantes por onde me meti, à espera do acaso. Afinal abri mão deste sonho, e deixei-me estar no meu sótão, com os meus livros e os meus versos. Foi então que a outra moça me apareceu. |
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