|
V O comendador Vasconcelos era um velho folgazão ... |
V O comendador Vasconcelos era um velho folgazão. Estouvado na mocidade, não o era menos na velhice. O estouvamento na velhice é, por via de regra, um senão; todavia, o estouvamento de Vasconcelos tinha um toque peculiar, um caráter todo seu, por modo que era impossível compreender aquele velho sem aquele estouvamento. Contava já seus cinqüenta e oito anos, e andaria lépido como um rapaz de vinte anos, se não fosse uma volumosa barriga que, desde os quarenta anos, lhe começara a crescer com grave desdouro das suas graças físicas, que as tinha, e sem as quais era duvidoso que a Sra. D. Mariana houvesse casado com ele. D. Mariana, antes de casar, professava um princípio seu: o casamento é um estado vitalício; cumpre não precipitar a escolha do noivo. Pelo que, rejeitou três pretendentes que, apesar de suas boas qualidades, tinham um defeito físico importante: não eram bonitos. Vasconcelos alcançou o seu Austerlitz onde os outros haviam achado Waterloo. Salvante a barriga, Vasconcelos era ainda um belo velho, uma ruína magnífica. Não tinha paixões políticas: votara alternadamente com os conservadores e os liberais para contentar os amigos que tinha em ambos os partidos. Conciliava as opiniões sem arriscar as amizades. Quando o acusavam deste ceticismo político, respondia com uma frase que, se não discriminava as suas opiniões, abonava o seu patriotismo: - Somos todos brasileiros. Quadrava o gênio de Magalhães com o de Vasconcelos. A intimidade não tardou muito. Já sabemos que o amigo de Oliveira tinha a grande qualidade de se fazer querido com pouco trabalho. Vasconcelos morria por ele; achava-lhe imensa graça e sólido juízo. D. Mariana chamava-lhe a alegria da casa; Cecília não tinha mais condescendente conversador. Para os fins de Oliveira era excelente. Não se descuidou Magalhães de sondar o terreno, a ver se podia animar o amigo. Achou o terreno excelente. Falou uma vez à moça a respeito do amigo e ouviu-lhe palavras de animadora esperança. Parece-me ser, disse ela, um excelente coração. - Afirmo que o é, disse Magalhães; conheço-o há muito tempo. Quando Oliveira soube destas palavras, que não eram muita coisa, ficou muito animado. - Creio que posso ter esperanças, disse ele. - Nunca te disse outra coisa, respondeu Magalhães. Magalhães nem sempre podia servir aos interesses do amigo, porque Vasconcelos, a quem caíra em graças, confiscava-o horas inteiras, ou palestrando, ou jogando o gamão. Um dia, Oliveira perguntou ao amigo se era conveniente arriscar uma carta. - Ainda não, deixa-me preparar a coisa. Oliveira acedeu. A quem ler estas páginas muito por alto, parecerá inverossímil da parte de Oliveira semelhante necessidade de um cicerone. Não é. Oliveira nenhuma demonstração dera até ali à moça, que se conservava ignorante do que se passava dentro dele; e se assim praticava, era por um excesso de timidez, fruto de suas proezas com mulheres de outra classe. Nada intimida mais a um conquistador de mulheres fáceis do que a ignorância e a inocência de uma donzela de dezessete anos. Acresce que, se Magalhães era de opinião que ele não se demorasse em expor os seus sentimentos, já agora pensava que era melhor não arriscar golpe sem certeza do resultado. A dedicação de Magalhães também parecerá condescendente aos espíritos severos. Mas a que se não expõe a verdadeira amizade? Na primeira ocasião que se lhe deparou, tratou Magalhães de perscrutar o coração da moça. Era de noite; havia gente em casa. Oliveira estava ausente. Magalhães conversava com Cecília a respeito de um chapéu com que uma senhora idosa entrara na sala. Magalhães fazia a respeito do chapéu mil conjeturas burlescas. - Aquele chapéu, dizia ele, parece-me um ressuscitado. Houve naturalmente alguma epidemia de chapéus em que morreu aquele, acompanhado de outros seus irmãos. Aquele ressuscitou, para vir dizer a este mundo o que é o paraíso dos chapéus. Cecília reprimia uma risada. Magalhães continuava: - Eu, se fosse aquele chapéu, pedia uma pensão como inválido e como raridade. Isto era mais burlesco que picante, mais estúrdio que engraçado; todavia, fazia rir Cecília. Repentinamente, Magalhães ficou sério e consultou o relógio. - Já se vai embora? perguntou a moça. - Não, senhora, disse Magalhães. - Guarde então o relógio. - Admira-me que Oliveira ainda não viesse. - Virá mais tarde. Os senhores são muito amigos? - Muito. Conhecemo-nos desde crianças. É uma bela alma. Houve um silêncio. Magalhães cravou os olhos na moça, que olhava para o chão, e disse: - Feliz aquela que o possuir. A moça não revelou a menor impressão ao ouvir estas palavras de Magalhães. Ele repetiu a frase, e ela perguntou se não seriam horas de tomar chá. - Já amou, D. Cecília? perguntou Magalhães. - Que pergunta é essa? - É uma curiosidade. - Nunca amei. - Por quê? - Sou muito criança. - Criança! Outro silêncio. - Conheço alguém que a ama muito. Cecília estremeceu e ficou muito corada; não respondeu nem se levantou. Para sair, porém, da situação em que as palavras de Magalhães a deixaram, disse rindo: - Essa pessoa... quem é? - Quer saber o nome? - Quero. É seu amigo? - É. - Diga o nome. Outro silêncio. - Promete não ficar zangada comigo? - Prometo. - Sou eu. Cecília esperava ouvir outra coisa; esperava ouvir o nome de Oliveira. Qualquer que fosse a sua inocência, havia percebido naqueles últimos dias que o rapaz tinha queda por ela. Da parte de Magalhães, não esperava semelhante declaração; todavia, o seu espanto não de cólera, apenas surpresa. A verdade é que ela não amava nenhum deles. Não tendo a moça respondido logo, Magalhães disse com um sorriso benévolo: - Já sei que ama outro. - Que outro? - Oliveira. - Não. Era a primeira vez que Magalhães apresentava um aspecto grave; penalizada com a idéia de que lhe houvesse com o silêncio causado alguma tristeza, que ela adivinhava, posto que não sentisse. Cecília disse ao fim de alguns minutos: - O senhor está brincando comigo? - Brincando! disse Magalhães. Tudo quanto quiser, menos isso; não se brinca com o amor ou o sofrimento. Já lhe disse que a amo; responda-me francamente se posso nutrir alguma esperança. A moça não respondia. - Não poderei viver ao pé da senhora sem uma esperança, embora remota. - O papá é quem decide de mim, disse ela desviando a conversa. - Pensa que eu sou desses corações que se contentam com o consentimento paterno? O que eu desejo possuir primeiro é o seu coração. Diga-me: posso esperar essa fortuna? - Talvez, murmurou a menina, levantando-se envergonhada dessa singela palavra. |
|
|
|
|