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IV Não te quero fatigar com a narração minuciosa e diária ... |
IV Não te quero fatigar com a narração minuciosa e diária de todos os acontecimentos. Emílio continuou a freqüentar a nossa casa, mostrando sempre a mesma delicadeza e gravidade, e encantando a todos por suas maneiras distintas sem afetação, amáveis sem fingimento. Não sei por que meu marido revelava-se cada vez mais amigo de Emílio. Este conseguira despertar nele um entusiasmo novo para mim e para todos. Que capricho era esse da natureza? Muitas vezes interroguei meu marido acerca desta amizade tão súbita e tão estrepitosa; quis até inventar suspeitas no espírito dele; meu marido era inabalável. - Que queres? respondia-me ele. Não sei por que simpatizo extraordinariamente com este rapaz. Sinto que é uma bela pessoa, e eu não posso dissimular o entusiasmo de que me possuo quando estou perto dele. - Mas sem conhecê-lo... objetava eu. - Ora essa! Tenho as melhores informações; e demais, vê-se logo que é uma pessoa distinta... - As maneiras enganam muitas vezes. - Conhece-se... Confesso, minha amiga, que eu podia impor a meu marido o afastamento de Emílio; mas quando esta idéia me vinha à cabeça, não sei por que ria-me dos meus temores e declarava-me com forças de resistir a tudo o que pudesse sobrevir. Demais, o procedimento de Emílio autorizava-me a desarmar. Ele era para mim de um respeito inalterável, tratava-me como a todas as outras, sem deixar entrever a menor intenção oculta, o menor pensamento reservado. Sucedeu o que era natural. Diante de tal procedimento não me ficava bem proceder com rigor e responder com a indiferença à amabilidade. As coisas marchavam de tal modo que eu cheguei a persuadir-me de que tudo o que sucedera antes não tinha relação alguma com aquele rapaz, e que não havia entre ambos mais do que um fenômeno da semelhança, o que aliás eu não podia afirmar, porque, como te disse já, não pudera reparar bem no homem do teatro. Aconteceu que dentro de pouco tempo estávamos na maior intimidade, e eu era para ele o mesmo que todas as outras: admiradora e admirada. Das reuniões passou Emílio às simples visitas de dia, nas horas em que meu marido estava presente, e mais tarde, mesmo quando ele se achava ausente. Meu marido de ordinário era quem o trazia. Emílio vinha então no seu carrinho que ele próprio dirigia, com a maior graça e elegância. Demorava-se horas e horas em nossa casa, tocando piano ou conversando. A primeira vez que o recebi só, confesso que estremeci; mas foi um susto pueril; Emílio procedeu sempre do modo mais indiferente em relação às minhas suspeitas. Nesse dia, se algumas suspeitas me ficaram, desvaneceram-se todas. Nisto passaram-se dois meses. Um dia, era de tarde, eu estava só; esperava-te para irmos visitar teu pai enfermo. Parou um carro à porta. Mandei ver. Era Emílio. Recebi-o como de costume. Disse-lhe que íamos visitar um doente, e ele quis logo sair. Disse-lhe que ficasse até a tua chegada. Ficou como se outro motivo o detivesse além de um dever de cortesia. Passou-se meia hora. Nossa conversa foi sobre assuntos indiferentes. Em um dos intervalos da conversa Emílio levantou-se e foi à janela. Eu levantei-me igualmente para ir ao piano buscar um leque. Voltando para o sofá reparei pelo espelho que Emílio me olhava com um olhar estranho. Era uma transfiguração. Parecia que naquele olhar estava concentrada toda a alma dele. Estremeci. Todavia fiz um esforço sobre mim e fui sentar-me, então mais séria que nunca. Emílio encaminhou-se para mim. Olhei para ele. Era o mesmo olhar. Baixei os meus olhos. - Assustou-se? perguntou-me ele. Não respondi nada. Mas comecei a tremer de novo e parecia-me que o coração me queria pular fora do peito. É que naquelas palavras havia a mesma expressão do olhar; as palavras faziam-me o efeito das palavras da carta. - Assustou-se? repetiu ele. - De quê? perguntei eu procurando rir para não dar maior gravidade à situação. - Pareceu-me. Houve um silêncio. - D. Eugênia, disse ele sentando-se; não quero por mais tempo ocultar o segredo que faz o tormento da minha vida. Fora um sacrifício inútil. Feliz ou infeliz, prefiro a certeza da minha situação. D. Eugênia, eu amo-a. Não te posso descrever como fiquei ouvindo estas palavras. Senti que empalidecia; minhas mãos estavam geladas. Quis falar: não pude. Emílio continuou: - Oh! eu bem sei a que me exponho. Vejo como este amor é culpado. Mas que quer? É fatalidade. Andei tantas léguas, passei à ilharga de tantas belezas, sem que o meu coração pulsasse. Estava-me reservada a ventura rara ou o tremendo infortúnio de ser amado ou desprezado pela senhora. Curvo-me ao destino. Qualquer que seja a resposta que eu possa obter, não recuso, aceito. Que me responde? Enquanto ele falava, eu podia, ouvindo-lhe as palavras, reunir algumas idéias. Quando ele acabou levantei os olhos e disse: - Que resposta espera de mim? - Qualquer. - Só pode esperar uma... - Não me ama? - Não! Nem posso e nem amo, nem amaria se pudesse ou quisesse... Peço que se retire. E levantei-me. Emílio levantou-se. - Retiro-me, disse ele; e parto com o inferno no coração. Levantei os ombros em sinal de indiferença. - Oh! eu bem sei que isso lhe é indiferente. É isso o que eu mais sinto. Eu preferia o ódio; o ódio, sim; mas a indiferença, acredite, é o pior castigo. Mas eu o recebo resignado. Tamanho crime deve ter tamanha pena. E tomando o chapéu chegou-se a mim de novo. Eu recuei dois passos. - Oh! não tenha medo. Causo-lhe medo? - Medo? retorqui eu com altivez. - Asco? perguntou ele. - Talvez... murmurei. - Uma única resposta, tornou Emílio; conserva aquela carta? - Ah! disse eu. Era o autor da carta? - Era. E aquele misterioso do corredor do teatro Lírico. Era eu. A carta? - Queimei-a. - Preveniu o meu pensamento. E cumprimentando-me friamente dirigiu-se para a porta. Quase a chegar à porta senti que ele vacilava e levava a mão ao peito. Tive um momento de piedade. Mas era necessário que ele se fosse, quer sofresse quer não. Todavia, dei um passo para ele e perguntei-lhe de longe: - Quer dar-me uma resposta? Ele parou e voltou-se. - Pois não! - Como é que para praticar o que praticou fingiu-se amigo de meu marido? - Foi um ato indigno, eu sei; mas o meu amor é daqueles que não recuam ante a indignidade. É o único que eu compreendo. Mas, perdão; não quero enfadá-la mais. Adeus! Para sempre! E saiu. Pareceu-me ouvir um soluço. Fui sentar-me no sofá. Daí a pouco ouvi o rodar do carro. O tempo que mediou entre a partida dele e a tua chegada não sei como se passou. No lugar em que fiquei aí me achaste. Até então eu não tinha visto o amor senão nos livros. Aquele homem parecia-me realizar o amor que eu sonhara e vira descrito. A idéia de que o coração de Emílio sangrava naquele momento despertou em mim um sentimento vivo de piedade. A piedade foi um primeiro passo. - Quem sabe, dizia eu comigo mesma, o que ele está agora sofrendo? E que culpa é a dele, afinal de contas? Ama-me, disse-mo: o amor foi mais forte do que a razão; não viu que eu era sagrada para ele; revelou-se. Ama, é a sua desculpa. Depois repassava na memória todas as palavras dele e procurava recordar-me do tom em que ele as proferira. Lembrava-me também do que eu dissera e o tom com que respondera às suas confissões. Fui talvez severa demais. Podia manter a minha dignidade sem abrir-lhe uma chaga no coração. Se eu falasse com mais brandura podia adquirir dele o respeito e a veneração. Agora há de amar-me ainda, mas não se recordará do que se passou sem um sentimento de amargura. Estava nestas reflexões quando entraste. Lembras-te que me achaste triste e perguntaste a causa disso. Nada te respondi. Fomos à casa da tua tia, sem que eu nada mudasse do ar que tinha antes. À noite quando meu marido me perguntou por Emílio, respondi sem saber o que respondia: - Não veio cá hoje. - Deveras? disse ele. Então está doente. - Não sei. - Lá vou amanhã. - Lá onde? - À casa dele. - Para quê? - Talvez esteja doente. - Não creio; esperemos até ver... Passei uma noite angustiosa. A idéia de Emílio perturbava-me o sono. Afigurava-se-me que ele estaria àquela hora chorando lágrimas de sangue no desespero do amor não aceito. Era piedade? Era amor? Carlota, era uma e outra coisa. Que podia ser mais? Eu tinha posto o pé em uma senda fatal; uma força me atraía. Eu fraca, podendo ser forte. Não me inculpo senão a mim. Até domingo. |
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