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IV Ditos os últimos adeuses, entramos ... |
IV Ditos os últimos adeuses, entramos. Eu dei o braço a Ângela, e procurei ver se ela apresentava aquela meia alegria e meia tristeza que era própria da ocasião. Nada disso. Ângela, apenas voltamos costas à estrada, e atravessamos a rua que ia ter à porta da casa, encetou uma conversação sobre coisas que nada tinham, nem de longe, com Azevedinho. A felicidade que isto me deu desviou-me da prudência com que eu sempre me houvera. Não me pude conter. Fitando nos belos olhos da moça um olhar que devia ser profundo e terno como o amor que eu já sentia, disse-lhe estas palavras: - Oh! obrigado! obrigado! Nisto chegamos à porta. A moça, admirada ao ouvir aquele agradecimento e não compreendendo a razão dele, olhou para mim admirada. Ia articular alguma coisa, mas eu deixando-a entrar fui voltear a casa e procurar o meu quarto. Não sei por que, quando me achei só, senti que as lágrimas me rebentavam dos olhos. Amava, eis a razão. Mas, sem a certeza de ser amado, por que me consideraria feliz? Há duas razões para isto. Uma prova a natureza elevada do amor. Como tinha eu um ideal, Ângela era o objeto em que o meu ideal tomava corpo. Bastava tê-la encontrado, bastava amá-la e era feliz. A outra razão era de egoísmo. Uma vez que ela não amasse o outro, era o que eu pedia naquele instante. Que viesse a mim com a virgindade do coração, que estivesse pura do menor pensamento de amor que fosse, enfim, que eu pudesse ser o primeiro que lhe aspirasse o perfume das ilusões inocentes, tal era o meu desejo e a minha aspiração. Duas horas estive encerrado no meu quarto. Preparava-me para sair e cheguei à janela. Ângela estava assentada debaixo de uma latada que havia ao lado da casa. Tinha na mão um livro aberto, mas via-se bem que não lia. Os olhos erravam do livro para o chão, com evidentes sinais de que lhe errava no espírito alguma coisa. Só no espírito? Não podia ser ainda no coração; era um primeiro sintoma; não era ainda o acontecimento da minha vida. Procurei não fazer rumor algum e contemplá-la sem que ela me visse. Recuei, corri as cortinas e por uma fresta cravei os olhos na moça. Correram assim alguns minutos. Ângela fechou o livro e levantou-se. Recuei mais e deixei as cortinas totalmente fechadas. Quando voltei a espreitar a linda pensativa, vi que ela saía em direção da frente da casa, sem dúvida para entrar, visto que um mormaço de verão começava a aquecer o ar. Ao abrir o chapelinho de sol para resguardá-la do mormaço, levantou os olhos e deu comigo. Não pude recuar a tempo: ela sorriu-se e aproximando-se da janela perguntou: - Que faz ai? Abri completamente as cortinas e debrucei-me à janela. Minha resposta foi uma pergunta: - Que fazia ali? Ela não respondeu, baixou os olhos e calou-se. Depois, voltando de novo para mim, disse: - Vou para a sala. Papaizinho está lá? - Não sei, respondi eu. - Até já. E foi caminho. Entrei. Quis deitar-me no sofá e ler; cheguei mesmo a tirar um livro; mas não pude; não sei que ímã me atraía para fora. Saí do quarto. Ângela estava na sala, ao pé da janela, diante de um bastidor de bordar que lhe dera o tio no dia em que completou dezessete anos. Aproximei-me dela. - Ora viva, Sr. misantropo... - Misantropo? A conversa começava assim às mil maravilhas. Peguei em uma cadeira, e fui sentar-me defronte de Ângela. - Parece. - Tenho razão para sê-lo. - Que razão? - É uma história longa. Se eu lhe contasse a minha vida ficava convencida de que não posso ser tão comunicativo como os outros. E depois... Parecia-me fácil declarar à menina os meus sentimentos; entretanto, tomava-me de um tal acanhamento e receio em presença dela, que não podia articular uma palavra positiva que fosse. Nada mais disse. Deitei os olhos para o bastidor e vi que ela bordava um lenço. Ficamos silenciosos alguns minutos. Depois, como fosse aquele silêncio embaraçoso, perguntei: - Quem é aquele Azevedinho? E firmando o olhar nela procurei descobrir a impressão que esta pergunta lhe produzira. O que descobri foi que as faces se lhe tornavam vermelhas; levantou os olhos e respondeu-me: - É um rapaz... - Isso eu sei. - É um rapaz lá do conhecimento de minha tia. - Não entendeu a minha pergunta. Eu perguntava que opinião forma dele? - Nenhuma: é um rapaz. De risonho tornei-me sério. Que explicação tiraria daquela vermelhidão e daquelas respostas evasivas? Ângela continuou a bordar. - Por que me faz essas perguntas? disse ela. - Ah! por nada... por nada... Havia em mim um pouco de despeito. Quis mostrar-lho francamente. - Ora por que há de tomar esse ar sério? - Sério? Não vê que estou rindo? Devia ser muito amargo o riso que eu afetava, porque ela, reparando em mim, deixou de bordar, e pondo-me a mão no braço, disse: - Oh! perdão! eu não lhe disse por mal... estou brincando... O tom destas palavras desarmou-me. - Nem eu me zanguei, respondi. Ângela continuou a falar, bordando: - O Azevedinho ia lá por casa de minha tia, onde conheceu meu e meu tio. É um bom moço, conversa muito comigo, é muito meigo e alegre. - Que lhe costuma ele dizer? - Falsidades... Diz que sou bonita. - Grande falsidade! - Ah! também! exclamou ela sorrindo com uma graça e uma singeleza inimitáveis. - Mas que lhe diz mais? - Mais nada. - Nada? - Nada! Ângela parecia dizer a custo esta palavra; estava mentindo. Com que fim? por que razão? Que fraco examinador era eu que não podia atinar com o motivo de todas aquelas reticências e evasivas? Estas reflexões passaram-me pela cabeça em poucos minutos. Era preciso desviar-me do assunto do rapaz. Mas sobre que poderia ser? Eu não tinha a ciência de entreter horas sobre coisas indiferentes, em conversa com uma pessoa que me não era indiferente. Tomei um ar de amigo, e mais velho, e disse a Ângela com um tom paternal: - Nunca amou, D. Ângela? - Que pergunta! disse ela estremecendo. - É uma pergunta como qualquer outra. Faça de conta que sou confessor. É simples curiosidade. - Como quer que lhe responda? - Dizendo a verdade... - A verdade... é difícil. - Então, é afirmativa. Amou. Ama ainda talvez. Se é correspondida, é feliz. Oh! nunca permita Deus que lhe suceda amar sem ser amada... ou pior, amar a quem ama a outro a outra, quero dizer. - Deve ser grande infelicidade essa... - Oh! não imagina. É o maior dos suplícios. Consome-se o coração e o espírito, e envelhece-se dentro em pouco. E o que se segue depois? Vem a desconfiança de todos; nunca mais o coração repousa tranqüilo na fé do coração alheio. - Oh! é triste! - Deus a preserve disso. Vejo que nasceu para dar e receber a suprema felicidade. Deus a faça feliz... e ao seu amor. E levantei-me. - Onde vai? perguntou-me ela. - Vou passear... Devo preparar-me para voltar à cidade. Não posso ficar aqui sempre. - Não vá... E fez-me sentar de novo. - Esta assim mal conosco? Que mal fizemos nós? - Oh! nenhum! preciso de tratar dos meus negócios. - Não quero que vá. Dizendo estas palavras, Ângela baixou os olhos e pôs-se a riscar maquinalmente com a agulha no lenço. - Não quer? disse eu. - É ousadia dizer que não quero; mas cuido que é o meio de fazê-lo ficar. - Só por isso? A moça não respondeu. Senti que me animava um raio de esperança. Olhei para Ângela, peguei-lhe na mão; ela não recuou. Ia dizer que a amava, mas a palavra não me podia sair dos lábios, aonde chegava ardente e trêmula. Mas, como era preciso dizer alguma coisa, lancei os olhos para o bordado; vi que estava quase completa uma inicial. Era um F. - Estremeci, F. era a minha inicial. - Para quem é este lenço? Ângela com a outra mão cobriu rapidamente o bordado, dizendo: - Não seja curioso! - É para mim, D. Ângela? - E se fosse, era crime? - Oh! não! Senti passos. Era o doutor que entrava. Recuei a distância respeitosa e dirigi algumas palavras a Ângela sobre a excelência do bordado. O doutor dirigiu-se a mim. - Ora, bem podia esperá-lo, disse ele. Cuidei que estivesse encerrado, e não quis incomodá-lo. - Estive aqui assistindo a este trabalho de D. Ângela. - Ah! bordados! Travou-se uma conversa geral até que veio a hora do jantar. Jantamos, conversamos ainda, e recolhemo-nos às dez horas,da noite. A mesa do chá declarei eu ao doutor que iria à cidade, senão para ficar, ao menos para dar andamento aos meus negócios. O meu caboclo tinha-me trazido uma carta de minha mãe, vinda pelo último vapor, e na qual me pedia que concluísse os negócios e voltasse à província. O doutor disse-me que fosse, mas que me não deixasse encantar pela cidade. Disse-lhe que em nenhuma parte encontrava o encanto que tinha ali em casa dele. Valeu-me a resposta um olhar significativo de Ângela e esta resposta do tio Bento: - Ora, ainda bem! |
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