Fiquei um instante trepidante, nervoso



Fiquei um instante trepidante, nervoso. Mas é um fato que quando as crises de pornéia da multidão agem sobre os nervos dos fracos, esses começam por desejar seguir alguém, seja quem for, com o desejo flutuante, o cio indeciso e como que tocado também de uma curiosidade malsã pelo vício dos outros. O carro desaparecendo causou-me uma vaga tristeza. Como seria agradável o que se fazia dentro, nas suas velhas almofadas! Larguei-me para a Candelária, que me pareceu um teatro tanta era a gente e tanta a luz elétrica, e estava lá roçando-me à turba, quando vi um conhecido. Sai então à pressa, sem lhe dar tempo aos cumprimentos e às fatais perguntas; sai, mergulhei de novo nas ruas mal-iluminadas, em que o luar punha uma suave pulverização de sonho. Iria a S. Bento, que tem um morro, árvores, mais sombras, mais recantos sugestivos, o Arsenal pegado e a vista do mar - o pai de todos os grandes vícios incomensuráveis...

Quando, porém, ia chegando ao Arsenal, lá dei com o carro outra vez, vasto como um quarto, com o cocheiro impassível e os estores vermelhos. A sombra cobria a calçada; no céu andava a Lua num estendal de ouro-pálido. Que esquisito peregrinar! que estranha peregrinação! Abriguei-me no desvão de uma porta. Passaram-se dez minutos assim, e era impossível apagar a ansiedade dos meus nervos para descobrir o enigma. A berlinda parecia tremer a capota empoeirada sob o sudário do luar. Depois, rodou devagar, como se tivesse uma alma e estivesse a disfarçar uma ação feia. Ao chegar ao escuro beco de Bragança parou, a portinhola abriu-se, uma sombra golfou, então aí a berlinda precipitou a marcha. Deus! que seria aquilo? Um crime? uma extravagåncia? A passeata de algum crente agonizando, que tivesse feito a promessa de arrastar a sua agonia aos pés de todos os corpos de Jesus expostos? Mas a sombra? Eu amo o horror das coisas inacreditáveis. Meti-me quase a correr pelo beco. No meu cérebro havia um escachoar de idéias...

Não encontrei a sombra, o vulto que eu vira sair do carro. E a procurá-la, de rua em rua, com a face a queimar, fui até a igreja do Rosário. Como? Não sei. O sangue latejava-me nas têmporas, um suor viscoso molhava-me a palma das mãos. Quando dei por mim, tinha diante de mim a velha igreja, e ao canto esquerdo do templo, exatamente igual, tal qual, a velha berlinda. Coincidência... Há desses encontros de gente que nunca se falará, em reuniões dominadas pelo vício. Não filosofei, porém. Fui ao cocheiro, querendo saber. - "Olá, camarada, desocupado? "- "Não", respondeu ele seco. - "Pago bem." - "Não posso, já disse." - "Tem alguém ai então?" O cocheiro cuspiu para o lado. "Ó seu, vá se pondo fora, se não quer que lhe aconteça alguma." Fiquei sem palavra e ele tocou.