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COMO HOUVESSEM ANUNCIADO O COMEÇO DO ATO SEGUINTE, DESPEDIMO-NOS ... |
Como houvessem anunciado o começo do ato seguinte, despedimo-nos. No corredor, encontramos o visconde e a filha. Cumprimentamo-nos rapidamente e descemos para as cadeiras. Meu companheiro, segundo a praxe elegante e desgraciosa, não quis entrar logo. Era mais chic esperar o começo do ato... Eu, porém, que era novato, fui tratando de abancar-me. Ao entrar, na sala, dei com o Alfredo Costa, o que me causou grande surpresa, por sabê-lo, apesar de rico, o mais feroz inimigo daquela gente toda. Não foi durável o meu espanto. Juvenal tinha posto a casaca e cartola, para melhor zombar, satirizar e estudar aquele meio. — De que te admiras? Venho a este barracão imundo, feio, pechisbeque, que faz todo o Brasil roubar, matar, prevaricar, adulterar, a fim de rir-me dessa gente que tem as almas candidatas ao pez ardente do inferno. Onde estás? Disse-lhe eu, ao que ele me convidou: — Vem para junto de mim... Ao meu lado, a cadeira está vazia e o dono não virá. E a do Abrantes que me avisou disso, pois, no fim do primeiro ato, me disse que tinha de estar em certo lugar especial... Vem que o lugar é bom para observar. Aceitei. Não tardou que o ato começasse e a sala se enchesse... Ele logo que a viu assim, falou-me: — Não te dizia que, daqui, tu poderias ver quase toda a sala? — E verdade! Bela casa! — Cheia, rica! observou o meu amigo com um acento sarcástico. — Há muito que não via tanta gente poderosa e rica reunida. — E eu há muito tempo que não via tantos casos notáveis da nossa triste humanidade. Estamos como que diante de vitrinas de um museu de casos de patologia social. Estivemos calados, ouvindo a música; mas, ao surgir na boca de um camarote, à minha direita, já pelo meio do ato, uma mulher, alta, esguia, de grande porte, cuja tez moreno-claro e as jóias rutilantes saíam muito friamente do fundo negro do vestido, discretamente decotado em quadrado, eu perguntei: — Quem é? — Não conheces? A Pilar, a "Espanhola". — Ah! Como se consente? — E um lugar público... Não há provas. Demais, todas as "outras" a invejavam... Tem jóias caras, carros, palacetes... —Já vens tu... — Ora! Queres ver? Vê o sexto camarote de segunda ordem, contando de lá para cá! Viste? —Vi. — Conheces a senhora que lá está? — Não, respondi. — E a mulher do Aldong, que não tem rendimentos, sem profissão conhecida ou com a vaga de que trata de negócios. Pois bem: há mais de vinte anos, depois de ter gasto a fortuna da mulher, ele a sustenta como um nababo. Adiante, embaixo, no camarote de primeira ordem, vês aquela moça que está com a família? — Vejo. Quem é? — E a filha do doutor Silva a quem, certo dia, encontraram, em uma festa campestre, naquela atitude que Anatole France, num dos Bergerets, diz ter alguma cousa de luta e de amor... E os homens não ficam atrás... — És cruel! — Repara naquele que está na segunda fila, quarta cadeira, primeira classe. Sabes de que vive? — Não. — Nem eu. Mas, ao que corre, é banqueiro de casa de jogo. E aquele general, acolá? Quem é? — Não sei. — O nome não vem ao caso; mas sempre ganhou as batalhas... nos jornais. Aquele almirante que tu vês, naquele camarote, possui todas as bravuras, menos a de afrontar os perigos do mar. Mais além, está o Desembargador Genserico... Costa não pôde acabar. O ato terminava: palmas entrelaçavam-se, bravos soavam. A sala toda era uma vibração única de entusiasmo. Saímos para o saguão e eu me pus a ver todos aqueles homens e mulheres tão maldosamente catalogados pelo meu amigo. Notei-lhe as feições transtornadas, o tormento do futuro, a certeza da instabilidade de suas posições. Vi todos eles a arrombar portas, arcas, sôfregas, febris, preocupados por não fazer bulha, a correr à menor que fosse... E ali, entre eles, a "Espanhola" era a única que me aparecia calma, segura dos dias a vir, sem pressa, sem querer atropelar os outros, com o brilho estranho da pessoa humana que pode e não se atormenta... Lima Barreto |
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