Já por esta reflexão fica o leitor instruído de que Ernesto não era homem de dar uma polegada de si ao ideal ...



Já por esta reflexão fica o leitor instruído de que Ernesto não era homem de dar uma polegada de si ao ideal. Uns através dos olhos da mulher queriam ver a alma; Ernesto enxergou simplesmente uma bolsa recheada. Este modo de traficar a própria pessoa não é nenhuma descoberta, nem eu me dou por Arquimedes. Aponto simplesmente mais este traço do nosso herói.

Ora, o nosso herói, pesadas as coisas, ficou determinado a entrar em combate.

"Qu'allait-il faire dans cette galère?" perguntaria Geronte.

O caso é que foi.

A primeira coisa que Ernesto resolveu no seu espírito foi não ceder um palmo ao encanto de Onda. Era o melhor meio para operar melhor. Estando a frio podia calcular, e calcular era, pelo menos, criar as mesmas vantagens da inimiga.

Não nos demoremos, leitor, com as primeiras cenas deste namoro, que nos não adiantam nada. Saltemos uns vinte dias e cheguemos a uma tarde de junho em que Onda, em companhia de duas amigas, espera a visita de Ernesto.

Depois de certa espera anuncia-se a chegada do herói. Onda recebe-o com o melhor dos seus sorrisos.

Ernesto, contente de si, cumprimentou o mais graciosamente que podia a bela e as amigas, e depois, com uma graça que procurava ser natural, assentou-se na cadeira que Onda lhe indicara com um gesto.

Até este dia Ernesto tinha procedido muito elementarmente: fazia um louvor à beleza de Onda entre dois suspiros que magoavam à força de parecerem magoados. Era, na opinião de Ernesto, o primeiro meio, o mais natural, o mais próprio. O que é certo é que, depois de alguns dias, Onda lhe parecera decidida a aceitá-lo. Mas não seria fingimento? dizia consigo Ernesto; e concluindo pela afirmativa, procurou empregar todas as suas armas, de maneira que não só pudesse aferir a sinceridade dos sentimentos da moça, mas ainda inspirar-lhe sentimentos verdadeiramente sinceros e profundos.

Ora, eis aqui como ele estreou a conversa:

- Já sei que está com saudades de mim?

- Ande lá, respondeu Onda, ainda bem que é o primeiro a fazer o capítulo da própria acusação.

- Sou criminoso.

- Talvez, não... Mas sabe por que tive saudades?

- Porque não venho aqui há cinco dias.

- Bem. E por que não veio?

Dizendo isto Onda cravou em Ernesto um desses olhares que, procurando animar uma resposta, deixam o espírito em perplexidade e confusão.

Ernesto esteve dois minutos sem responder, mas também sem desviar os seus olhos dos olhos da moça.

É que aquele olhar era de fogo grego que Onda guardara para a ocasião oportuna. Depois de uma ausência de cinco dias, parecendo que a presa se escapava, cumpria prendê-la de modo que não lhe desse mais ocasião de tão longos esquecimentos.

Esse olhar era tudo. Derrubaram-se os projetos de Ernesto: vinha com a intenção de experimentar o ciúme da moça, trazia já redigida a mentira que servia de arma, mas tudo se lhe esqueceu, tudo se inutilizou.

Sem desviar os olhos de Onda, Ernesto balbuciou estas palavras:

- Estive doente.

- Doente? Com efeito, está pálido.

Ernesto lançou rapidamente os olhos para um espelho e reparou que estava realmente pálido.

Mas esta palidez não resultava de moléstia alguma, ou antes resultava de uma moléstia que só agora se manifestava em toda a sua ação.

Onda estava segura de seu triunfo. Via o efeito que produzia no espírito de Ernesto e comprazia-se nessa vitória que tão voluntariamente adiara. O essencial era convencer a Ernesto que ela o amava. Ora, o tom das suas palavras, a magia do seu olhar, faziam entrar no espírito do moço esta convicção.