Ernesto escondeu-se no vão da janela contígua ...



Ernesto escondeu-se no vão da janela contígua e procurou cobrir-se entre as cortinas para não ser visto se alguém passasse.

Depois prestou o ouvido à conversação e procurou distinguir as vozes. Não havia voz de homem. Além de Onda, havia uma voz de mulher. Falavam o nome dele. Redobrou de atenção.

- Como és feliz! dizia a voz desconhecida.

- Feliz?

- Ou antes ardilosa!

- Por que ardilosa? Tenho eu culpa que sejam todos os homens de uma mediocridade de espírito incomparável? Divirto-me, nada mais.

- Oh! mas esse, o Ernesto, não é tão medíocre assim...

- Mais que os outros. Tem o que os outros não tinham ou não pareciam ter: a vaidade de agradar por seus encantos.

- Pois este?...

- É o que te digo. Acreditarás tu que foi só depois de muitos dias que me resolvi a prendê-lo como todos? Ao princípio afetava uma indiferença sem igual: parecia alheio a mim, e entretanto eu sabia que ardia por figurar entre os meus adoradores. Hoje é o pior de todos. Se visses a carta que me escreveu!

- Ah! escreveu-te...

- Oh! um regimento de tolices, sem pés nem cabeça, umas coisas já muito velhas e batidas, declarando-me que da minha decisão dependia a felicidade ou a condenação dele. Quer fazer supor que morre se eu responder que não o aceito em meu coração. Que tal?

- Pensei que este meio já se não usava.

- Usa-se, usa-se.

- Mas dize-me cá; não gostas de alguém?

- Por ora, não.

- Mas deveras ninguém te inspirou ainda amor?

- Não. Que queres? Fui educada com o recato maior deste mundo; entrando na convivência das outras, e nas distrações nos bailes, não pude logo ao principio tomar afeição alguma. Foi tempo esse que gastei em duas coisas: em ler e observar. Ora, da leitura adquiri idéias talvez um pouco absurdas, mas enfim adquiri, e fora das quais não compreendo o amor. Gosto de amar e ser amada por inspiração, e com verdadeira paixão. Até aqui nada tenho visto além de uns amores vulgares que não contentam o coração.

- E sabes se algum dia encontrarás?

- Talvez... quem sabe?

- Ah! maliciosa! Aí anda coisa!

- Qual!

- Quem sabe se este último, este de hoje, o da flor?...

Nisto passava um grupo. As vozes calaram-se e Ernesto foi obrigado a coser-se mais com a janela e a cobrir-se com a cortina.

O rapaz suava ouvindo aquelas coisas a seu respeito. Sentia o efeito que se sente ao acordar de um sonho em que se parece estar no cimo de uma montanha, quando realmente se está a três ou quatro palmos do chão.

Não era bem o amor dele que se ressentia; era mais o amor próprio ferido naquelas palavras com que era tratado.

Depois de uma batalha tão renhida e cuidada, reparava ele que não passara de um joguete aos manejos de uma dama ardilosa e namoradeira.

Quando pôde de novo ouvir a conversa que, aliás, lhe chegava entrecortada e incompleta, já as duas moças tratavam de outro ponto da questão.

- Mas o que pretendes fazer? perguntou a desconhecida.

- É conforme o modo por que ele me falar. Talvez o receba com uma secura tal que ele nunca mais se lembre de mim.

- Não tens pena de perdê-lo?

- Ora, rei morto, rei posto.

- Dize antes: reis mortos, reis postos