Deu ordem para que o não incomodassem ...



Deu ordem para que o não incomodassem; mandou fazer café, acendeu um charuto, leu e releu Propércio e Millevoye, e depois de duas horas de incubação intelectual redigiu o seguinte manifesto do coração:

"Minha prezada Senhora.- Uma palavra sua vai ser para mim a condenação ou a salvação. Meu coração chegou ao estado de só admitir estas soluções extremas.

"Bem sei quão grande é a minha ousadia. Bem sei que pretender o seu amor é aspirar às estrelas do céu, à luz divina da glória eterna; sou talvez indigno de receber das suas mãos a coroa do meu supremo martírio. E se, no meio desta ventura, posso discernir estas coisas, é preciso que o amor que lhe consagro tome proporções tais que me não seja possível conservar no fundo da minha mediocridade.

"Amo-a; não cuide, porém, que este amor, semelhante ao amor com um dos homens, fosse apenas o resultado de uma fantasia e a conclusão de um cálculo. Não. Este amor é caso de vida e de morte; é um desses afetos em que a alma se empenha toda e do qual não pode sair sã e salva.

"Desde que a vi, senti que o meu coração tinha encontrado o seu ideal; onde há aí beleza mais admirável, mais rara, mais completa? A antiguidade tinha repartido os diversos modos da beleza nas deusas que inventou. Mas nesta que o meu coração faz glória de amar reúne-se tudo: a majestade de Juno, o recato de Hebe, a beleza de Ciprina, o aspecto virginal das três Graças.

"A um coração de poeta, posto que de gênio não o seja eu, tal reunião de encantos não podia passar despercebida; vê-la, foi tornar-se cativo, e cativo desse cativeiro mágico que tem o dom de fazer beijar os ferros e amar a condição. É que cativar-me assim, é libertar-me, é deixar os laços da matéria, remontar-me à pura região dos gozos desconhecidos.

"Em tal estado, a afirmativa ou a negativa é uma sentença de vida ou de morte. Nas suas mãos está fazer de mim um venturoso ou um desgraçado.

"Talvez fora melhor que isto que aqui lhe digo no papel fosse expresso de viva voz; mas eu não sei se teria coragem de falar. Longe de seus olhos sinto-me menos acanhado, mais livre, mais próprio para exprimir o estado do meu coração.

"Aguardo a sua sentença. Ernesto".

Apesar de certa incongruência e da aparente afetação desta carta, Ernesto releu-a contente, admirando o belo estilo que até ali não descobrira em si.

Fechou a carta e arranjou meio de fazê-la chegar secretamente às mãos de Onda.

A moça respondeu verbalmente que, no dia seguinte, no sarau que se dava em casa de um tio dela, se entenderia com Ernesto.

Ernesto recebeu com alguma amargura esta resposta. Todavia sempre esperançado preparou-se para o sarau, e lá foi ter.

Antes de ir passou pelos olhos, durante o dia, a cópia da carta com que ficara, e a cada período que lia parecia-lhe que Onda não era capaz de resistir.

Não quis ir cedo. Pareceu-lhe melhor fazer-se esperar e fazer nascer da impaciência uma resposta mais pronta. Só as onze horas compareceu ao sarau.

Dançava-se uma polca.

Onda e um cavaleiro (exatamente um dos pretendentes do Teatro Lírico) faziam as delícias dos apreciadores da polca.

Ernesto, com o coração aos pulos, esperou, encostado a um portal, que a dança acabasse.

E posto que dali a dez minutos a polca se tivesse acabado, tal era a impaciência de Ernesto, que lhe pareceu um século. É que não era só a impaciência, era já o ciúme de vê-la nos braços de outro.

Terminada a polca, Onda, contra as previsões de Ernesto, foi percorrer alguns salões pelo braço do cavaleiro.

Que significava aquilo? Ernesto ficou algum tempo perplexo. Finalmente refletiu que, tendo chegado poucos minutos antes, não podia a moça saber logo da sua presença.

Devia ir falar-lhe.

Dava alguns passos quando um dos amigos da aposta acercou-se dele e pediu-lhe novas do namoro.

Ernesto, procurando sorrir, disse que mais tarde poderia dizer alguma coisa.

- Os outros estão aqui, disse o amigo.

- Todos? perguntou Ernesto.

- Todos.

- Bem, até logo.

E dizendo isto, Ernesto foi-se em procura da mulher que o prendia.

Atravessando uma sala viu dirigir-se para ele o par que procurava. Deteve-se. E para aparentar indiferença e acaso foi a um espelho e aí fingiu consertar os cabelos, com a mão, ao de leve.

Ficava assim de costas para os dois e podia ver no reflexo do espelho se ela reparava nele ou não.

Ora, o que ele viu foi a moça trocar com o cavaleiro um olhar de ternura, e este arrancar-lhe das mãos, que apenas opuseram fraca e doce resistência, uma pequena flor que ela tirara do ramalhete.

Ernesto enfiou.

Após a comoção da cena que acabava de presenciar, outra comoção o tomou: foi a vista do rosto pálido com que ficou.

Os dois passaram.

Ernesto deixou-se cair em um sofá.

Quase a ganhar a batalha, no momento da vitória decisiva, encontrava-se repentinamente no mesmo ponto em que começara as lutas.

Quando passou a primeira comoção veio-lhe à lembrança a carta que escrevera e cuja resposta ia buscar. Mas devia pedi-la depois do que presenciara? E não era a sua posição uma posição ridícula?

Pensando em tudo isto, Ernesto levantou-se e passeou à toa por todas as salas e corredores.

Dançava-se, cantava-se, tocava-se; ele nada via, nada ouvia; via o ridículo e o desdém. Supunha ter metido uma lança em África e descobria agora que era tão medíocre como os outros.

Nestas reflexões amargas andava, quando, ao passar por uma das salas, ouviu a voz de Onda.

A voz partia do vão de uma janela.