Nessa triste posição esteve João das Mercês uns quinze dias ...



Nessa triste posição esteve João das Mercês uns quinze dias que foi quanto lhe durou o resto do ordenado. Ao fim desse tempo não tinha que comer.  O estômago é engenhoso e tem boa memória  João lembrou-se que havia em uma casa de pasto do seu conhecimento, um caixeiro a quem emprestara dez mil réis em ocasião em  que se achava desempregado. Comeu para lá.

O caixeiro conheceu o credor, e acudiu a servi-lo. João das Mercês pediu alguma coisa para almoçar, e fingindo ler a lista declarou ao caixeiro que não tinha dinheiro naquela ocasião.

O caixeiro era bom  rapaz e não deixou de o servir. Foi pelo mesmo teor o jantar e a ceia. No dia seguinte não havendo outra vela no horizonte culinário, João das Mercês recorreu ainda ao caixeiro, que não deixou de lhe fiar o comer; mas pensando que a penúria de João das Mercês era temporária, limitou-se a afiançar ao dono da casa a capacidade do freguês.

Ao fim de duas semanas, quando João das Mercês se assentava para comer o seu décimo quinto almoço, o dono da casa foi-lhe levar uma conta que fez empalidecer o pobre rapaz.

- Amanhã lhe pago isto, respondeu ele pondo a conta no bolso, e com  tanta confiança que parecia estar à espera de algum legado.  Ignora-se como comeu ele no dia seguinte e nos outros. Um mês depois achamo-lo empregado em  copiar certidões e outros papéis em casa de um tabelião. Era ativo no trabalho e sério no procedimento; infelizmente o tabelião padecia de moléstias que o enchiam de mau humor certas manhãs, mormente se comia em véspera carne cozida. Um dia em que o tabelião entrou no cartório afinadíssimo, João das Mercês teve a desgraça de copiar mal um papel. O tabelião revoltou-se contra o escrevente, e mandou fazer outra cópia, a qual, não saindo capaz, levou o tabelião às nuvens.  Por desgraça, João das Mercês abalroou na mesa e entornou-lhe o tinteiro sobre uma procuração.

Foi demitido.

Tentou João das Mercês entrar no comércio, e alcançou ser admitido como sócio de indústria em um armarinho.  O armarinho era afreguesado e João das Mercês julgou ter enfim dado o último golpe no caiporismo.  Daí a um ano reconheceu que andava iludido com a aparente vitória.

O caiporismo é a hidra de Lema.

O sócio disse-lhe um dia de manhã que ia buscar um primo em Sapopemba e partiu acompanhado de uma pequena mala.

João das Mercês ficou em casa só.

Mas os dias correram sem que o sócio voltasse; até que João fosse surpreendido com  uma letra de quinhentos mil réis.  Recorreu à burra e não achou vintém. Deu parte à policia; mas nem por isso escapou da correção.

Foi solto depois de um laborioso processo em que ficou provada a sua completa inocência. Os credores tomaram conta dos bens, e João das Mercês ficou no meio da rua com  as algibeiras vazias e nenhuma esperança de melhora.

Não tinha as algibeiras vazias de todo; depois de as revolver muito achou seis mil réis.

- Que tempo me durará isto? perguntou ele a si mesmo.  Nem três dias; é preciso comer e dormir. Acabado este dinheiro estou como antes. Que farei?

Aqui teve uma dessas inspirações que salvam impérios.

- Gasto dez tostões em alguma coisa, e com os cinco mil réis de resto compro um quarto de loteria.

Já sabemos que ele tinha esta mania que lhe deixara uma das sete amas.

Assim fez.

Depois de comer tranqüilamente um almoço sucinto e modesto, encaminhou-se para a rua da Quitanda e comprou o bilhete.

- 1441, disse ele, bom número; tenho fé.

Tinha uma esperança mas não tinha jantar nem cama. Felizmente a roda corria no dia seguinte. João das Mercês entrou a passear pelas ruas, disposto a sofrer filosoficamente a fome e o mais na esperança dos vinte contos.

Casualmente encontrou o tio Gaspar.

- Como estás? perguntou-lhe o tio.

- Bom.

- Já te livraste do processo?

- Já.

- Tão depressa?

- Acha que foi depressa?

- Sim, estas coisas costumam a ser mais longas. Eu quis fazer alguma coisa por ti; mas tua tia que é uma senhora de muito bem pensar, disse: "- Era bom ir socorrer o Joãozinho; mas o crime é tão feio que não é bom a gente meter-se nisto; que pensas tu Gaspar?" "- Que hei de pensar mulher?  Penso que o rapaz é inocente e que foi atraiçoado; mas as aparências enganam... e nesse caso é minha vontade que não nos metamos nisto".

- Faz bem.

- Onde estás agora?

- Aqui na rua.

- Mas qual é o teu emprego?

- Passear.

- Que dizes?

- A verdade.

Gaspar que não era mau homem, ficou penalizado com a situação do sobrinho. Quis fazer alguma coisa por ele; mas não ousava.

- Já comeste?

- Hoje comi; amanhã não sei.

- Olha, disse Gaspar com um belo movimento de generosidade, toma lá; eu fui agora mesmo receber um dinheiro; toma dez mil réis.

João das Mercês aceitou os dez mil réis e abraçou o tio.

- Bem! disse ele, a sorte começa a ceder.  Já tenho com que dormir hoje e comer amanhã.