Era não contar com o caiporismo e dona Angélica ...



Era não contar com o caiporismo e dona Angélica. Esta senhora pediu ao marido contas do dinheiro que fora cobrar. Gaspar contou-lhe francamente o estado em que achara João das Mercês e o procedimento que tivera. Dona Angélica irritou-se contra o marido e o sobrinho e exigiu a imediata entrega do dinheiro. Por honra dela, devo dizer que a sua intenção era simplesmente mortificar o marido.  Mas este, acostumado a obedecer-lhe, tomou à letra a ordem e saiu desesperado em busca de alguém que lhe emprestasse dez mil reis.

Esse alguém foi o sobrinho.

João das Mercês viu de longe o tio e aproximou-se dele. Achou-o triste e taciturno, perguntou-lhe o que tinha.

- Nada, disse Gaspar.

- Alguma coisa tem meu tio; vamos diga o que é.

Gaspar não disse palavra.

Então lembrou-se João das Mercês do domínio que a tia exercia no ânimo do marido, e calculou que a tristeza de Gaspar se prendesse ao generoso presente dos dez mil réis.

- Qual! disse Gaspar, quando João das Mercês lhe comunicou a suspeita; Angélica não era capaz de semelhante coisa; estima-te e respeita-te. A verdadeira causa de minha tristeza é que esse dinheiro não era meu, e eu dei-te os dez mil réis por engano.

João das Mercês entregou o dinheiro ao tio.

Gaspar sentiu-lhe borbulhar-lhe uma lágrima nos olhos.  Apertou a mão ao sobrinho e foi para casa. Entrava triunfante com os dez mil réis, quando dona Angélica franzindo o sobrolho, perguntou-lhe de onde os houvera. Gaspar confessou-lhe a verdade.

- Que! exclamou a esposa; pois tu tiveste ânimo de ir tirar estes pobres dez mil réis ao rapaz que nem comer tinha?

- Mas tu...

- Eu, o que? Eu disse aquilo por dizer. Vai, vai entregar este dinheiro ao pobre rapaz.

- Onde o encontrarei agora?

Gaspar saiu e não achou o sobrinho. Às ave-marias voltou para casa, mas receando que a mulher lhe revistasse as algibeiras, coisa que nunca deixava de fazer todas as noites, tratou de gastar os dez mil réis como pôde.

João das Mercês passou a noite na rua; no dia seguinte almoçou com um outro companheiro do cartório; e à hora do costume foi para a Misericórdia ver correr a roda.

- Tenho um pressentimento, disse ele consigo, de que hoje venço o destino.

Chegou; dez minutos depois o n.0 1441 era aclamado como tendo obtido os vinte contos de réis.

João das Mercês desmaiou.

Deram-lhe os prontos socorros. Tornou a si, apalpou as algibeiras; e achou o abençoado bilhete.

Graças a este recurso inesperado foi à antiga casa de pasto, cuja dívida estava paga, e apresentou o bilhete.

- Tenho aqui a sorte grande; dê-me de jantar que eu depois de amanhã lhe satisfaço a conta do que for.

Foi prontamente obedecido.  Jantou como um príncipe. No fim pediu ao caixeiro conhecido, sempre sobre a base do bilhete, alguns charutos que só tinham o defeito de não serem de Havana; no mais não prestavam para nada.

Mas naquela situação tudo o que se fuma é bom. Qualquer homem fumará alegremente couro de boi, se tiver a certeza de que no dia seguinte lhe metem na algibeira vinte contos de réis.

Acabava ele de acender um charuto, quando um sujeito que lhe ficara fronteiro, e tinha ouvido a conversa com o dono da casa, lhe disse com familiaridade:

- Com que então tirou a sorte grande?

- É verdade, respondeu João das Mercês, com a indiscrição de um homem feliz após tantas desgraças. Tirei a sorte grande e ainda estou admirado disso.

- Por que? disse o sujeito, levantando-se com  a xícara de café na mão e indo assentar-se à mesa do rapaz.

- Porque fui sempre muito caipora. Nunca comprei bilhete que me saísse sequer o mesmo dinheiro. Desta vez porém acertei..

- Homem, eu também fui sempre caipora. Joguei dois anos com o mesmo número e nunca tirei mais de 40$000.  Um dia porém, saiu o diabo detrás da porta e caiu-me a bicha em casa.

- Sim? Quando foi isso?

- Foi há seis meses.

- Um quarto ou bilhete inteiro?

- Meio bilhete.  Recebi dez contos.

- Talvez não precisasse deles...

- Quase que lhe posso dizer isso. Graças a Deus ajuda que não viessem os dez contos, tinha com que passar.  Acontece-lhe o mesmo?

- Infelizmente não, disse João das Mercês seduzido com a maneira e a confiança do interlocutor.

- Mais uma razão para que eu o felicite.

O desconhecido apertou a mão a João das Mercês e ofereceu-lhe um charuto.

- Estes charutos daqui não prestam, tome este. João das Mercês acendeu o charuto depois de pôr o seu fora, e reclinou-se sobre a mesa a conversar com o desconhecido.