Acendi também um charuto enquanto Mendonça me contava uma aventura parisiense ...



Acendi também um charuto enquanto Mendonça me contava uma aventura parisiense em que entravam ele, o conde e uma estrela do bosque de Bolonha. Deixei que a conversa levasse esse caminho, porque era o meio de reter o meu companheiro.

- Já vês, disse eu voltando ao meu assunto, já vês que teu tio tinha gosto; Rafael e Velasquez, são alguma coisa. Vamos ver o resto da casa.

Seguia-se outra sala menor que a primeira, onde nada havia que seja digno de nota. Apenas vimos sobre uma mesa um cachimbo alemão, que necessariamente devia ter pertencido ao cavaleiro Teodoro Hoffmann, pois a sua forma era de todo fantástica. Representava uma figura do diabo, com chapéu de três bicos, cruzando as pernas, que eram de cabra.

- Olé! disse Mendonça; o tio fumava!

- Parece que sim; e o cachimbo não me parece ortodoxo.

- Pelo contrário, respondeu Mendonça; não pode ser mais ortodoxo do que é; meter fogo na cabeça do diabo não te parece digno de um servo de Deus?

- Tens razão! disse eu sorrindo.

Mendonça readquiria o seu bom humor e era isso justamente o que eu queria. Se não fosse assim, era provável que nos fossemos embora dentro de dez minutos. Agora estava tranqüilo; quando Mendonça estava de bom humor obedecia a tudo.

Depois de examinarmos o cachimbo que, além daquela não oferecia nenhuma particularidade, seguimos por um corredor e fomos ter à sala de jantar.

Esta como outras salas e quartos da casa, nada tinham que se parecesse com mistério. Passando por um dos corredores vimos uma escada que ia ter a um sótão. Subimos. No meio da escada, Mendonça estacou; ouvira um rumor em cima.

- São ratos, disse-lhe eu.

- Serão? perguntou Mendonça empalidecendo um pouco.

- Querias que fosse a alma do Antão?

Subi afoitamente; Mendonça envergonhado, subiu também. A coragem de muita gente não tem outra explicação. Não é sempre por valentia que os homens são valentes, diz La Rochefoucauld.

Vasto era o sótão. Compunha-se de uma sala de estudo e de escrita, uma alcova na frente, e uma vasta sala no fundo. Era por assim dizer um segundo andar.

O que primeiro examinamos foi a sala da frente cuja mobília se compunha de algumas cadeiras, uma secretária, duas estantes, um sofá, tudo como qualquer mortal pode ter. Havia sobre a secretária dois bustos de mármore, e aqui começa o fantástico: uma era a cabeça de Cristo, outra a de Satanás. Cristo estava à direita, Satanás à esquerda.

- Bravo! exclamei; vou penetrando no homem. Achas ainda alguma ortodoxia nesta aproximação de bustos?

Mendonça, que estava enlevado no primor da escultura, respondeu:

- Toda.

- Explica-te.

- O tio juntava-os para emblema da vida humana, que se compõe do mal e do bem; o bem está aqui para corrigir o mal. É o ceci tuera cela, de Vitor Hugo.

- Está feito; tu explicas tudo. Mas é porque aqui a simetria das coisas te favorece. Cristo e Satanás ao lado um do outro é uma simetria de poeta; mas eu creio que Pedro Antão era outra coisa. Olha aqui para o chão; vês esta reunião de coisas extravagantes? Um par de chinelas, uma imagem da Virgem, uma trança de cabelos amarelos, um baralho de cartas, uma cruz, uma página de hebraico; vês?...