A proporção que eu ia inventariando os objetos encontrados ...



A proporção que eu ia inventariando os objetos encontrados no chão, ia o Mendonça examinando atentamente, tendo previamente calçado um par de luvas a fim de não macular as mãos.

Abri uma janela a fim de que o ar penetrasse nos aposentos. Depois, sacudindo o pó de duas cadeiras, sentei-me numa delas, e disse a Mendonça:

- Sabes que mais? Já não vou daqui sem que me contes alguma coisa do tio. Que idade tinha ele?

- Quarenta anos.

- Viveu sempre recluso?

- Desde muito tempo. Nos últimos cinco anos nem saía de casa. Era um criado que lhe trazia o que precisava. Esse mesmo criado morreu na véspera de morrer o tio.

- Qual foi o motivo da morte do criado?

- Não sei; creio que uma apoplexia.

- Quem sabe? Talvez a morte do criado explique a morte do seu tio. Estou a ver aqui um assassinato e um suicídio. De que morreu o tio?

- De uma queda.

- Dentro de casa?

- Sim.

- Bem digo eu; aqui há coisa. Estes objetos dizem claramente que Pedro Antão era feiticeiro.

Mendonça sorriu com desdém; posto que fosse supersticioso e timorato, Mendonça não acreditava em sortilégios. Eu era então um pouco dado a essas crenças, e ainda hoje não deixo de as ter. Depois que os filósofos modernos, com a mania de destruir tudo, afirmaram que o criador era uma invenção dos homens, eu, que não dou ao acaso as honras de ter criado o universo, substitui Deus por um grande feiticeiro, autor de todas as coisas, e nem por isso sou mais absurdo que os filósofos.

- Que quer dizer, continuei eu, esta madeixa de cabelos amarelos?

- É uma madeixa de cabelos, respondeu Mendonça; amareleceram com o tempo.

- E esta página de hebraico não quer dizer alguma coisa?

- Não sei se é hebraico ou siríaco.

- Deve ser hebraico. Eu não conheço essas línguas, mas conheço os caracteres; estes são hebraicos. Quanto a esta cruz metida entre um baralho de cartas, creio que não dirás ser o bem e o mal, emblema da vida humana. Mas deixemos isto; que houve notável na vida do tio?

- Coisa nenhuma. Viveu aqui recluso sem procurar a família; nem recebê-la em casa. Ao principio, correu que o tio tinha alguma beleza escondida, e meu pai procurou saber disso conversando com o criado, mas o criado disse que não havia ninguém. Verdade é que o primo Antônio disse que uma noite, passando por aqui, viu da rua uma sombra de mulher passeando na sala de visitas; mas eu o convenci logo de que seria o mesmo tio, embrulhado em um lençol.

- Que diziam os vizinhos?

- Apenas um afirmou ter ouvido uma noite gemidos lúgubres cá dentro; no dia seguinte, não sei se por humanidade, se por curiosidade, mandou o vizinho saber o que era; o tio correu o portador a pau. Queres que te diga a minha opinião?

- Não, não digas. Veremos se eu descubro...

- Não tens nada que descobrir: creio que o tio era doido.

- É o que te parece. Veremos isso. Talvez esta secretária nos diga alguma coisa; mas está fechada. Como abri-la?

- Arrombe-se amanhã.

- Pois sim; mas vamos ver o resto do sótão.

Peguei na vela e encaminhamo-nos para o interior. No corredor que separava as duas salas, bati com o pé num objeto que foi parar três passos adiante.

Era um par de óculos de ouro.