- Aqui tens, concluí eu nem mais nem menos a história do tio ...



- Aqui tens, concluí eu nem mais nem menos a história do tio, dos seus motivos de reclusão, e da sua morte desastrosa; aí tens explicados os óculos no corredor, a escada de seda na outra sala. Queres mais claro?

- Realmente, disse Mendonça, falas com uma segurança que pareces ter visto tudo isto!!

- Para que serviria a perspicácia então?

- Safa! Eras capaz de provar que eu ontem matei um homem!

- Questão de perspicácia; nada mais. Queres apostar uma coisa?

- O que?

- Queres apostar que eu acho nesta secretária algum indício do que estive a referir?

- Então sabias alguma coisa?

- Eu, nada. Mas tenho um pressentimento de que aqui dentro acharei coisa que nos guie e me prove a veracidade do que te acabei de contar. Vamos abri-la.

- Com que?

- Não tens nada?

- Nada. Sabes que mais? Vamos embora. Amanhã, abriremos isto.

- Não, agora mesmo.

- Qual! olha; são três horas quase. Vamos dormir; amanhã voltarei contigo e de manhã, virá conosco um homem que entenda disto...

- Pois sim.

Saímos da casa de Pedro Antão; e eu confesso que não dormi a noite inteira, porque o pouco que dela restava, gastei-a eu a pensar na história do homem. Se eu achasse na secretária alguma coisa, uma cartinha de amores, uma lembrança de mulher, tinha ganho a glória de ter adivinhado uma historia que ninguém descobriria nem exporia com tanta lucidez.

No dia seguinte as dez horas da manhã fui ter com o meu amigo Mendonça que ainda estava dormindo; esperei que acordasse e almoçasse, depois do que fomos buscar um ferreiro, encarregado de arrombar a secretária de Pedro Antão.

A fechadura não resistiu muito tempo.

Quando nos achamos sós, entramos a examinar o conteúdo daquele velho móvel, testemunha insuspeita da vida do tio.

Muitos objetos íamos encontrando que não serviam para o caso; papéis velhos; cartas de amigos, contas de credores, notas de leitura, etc.

Nada vimos que servisse ao caso.

- É impossível, disse eu; vejamos nas gavetinhas.

Nas gavetinhas também nada se encontrou que pudesse ter relação com a minha versão da morte de Pedro Antão.

De repente, disse-me Mendonça ter achado uns cabelos.

- Ah! exclamei, enfim

- Mas são cabelos brancos, acrescentou Mendonça.

Em resumo, nada encontramos que nos pudesse guiar no assunto, e eu senti deveras porque o menor indicio era naquele caso uma prova; ao menos eu assim o entendia.

No meio do trabalho em que estávamos, não demos por uma gaveta escondida por trás de uma tabuinha.

Abriu-se a gaveta por si e graças a um acaso. Querendo eu arrancar um folheto, apertei uma mola e a gaveta abriu-se.

Dentro havia um rolo fino de papel com esta nota por fora. "- Para ser entregue a meu sobrinho Mendonça".

- Vejamos.

Mendonça abriu o rolo. Continha uma folha de papel com as seguintes palavras:

"Meu sobrinho. Deixo o mundo sem saudades. Vivo recluso tanto tempo para me acostumar à morte. Ultimamente li algumas obras de filosofia da história, e tais coisas vi, tais explicações encontrei de fatos até aqui reconhecidos, que tive uma idéia excêntrica. Deixei aí uma escada de seda, uns óculos verdes, que eu nunca usei, e outros objetos, a fim de que tu ou algum pascácio igual inventassem a meu respeito um romance, que toda a gente acreditaria até o achado deste papel. Livra-te da filosofia da história".

Calcule agora o leitor o efeito deste escrito, espécie de dedo invisível que me deitava por terra o edifício da minha interpretação!

Daí para cá não interpretei à primeira vista todas as aparências.