- Por que razão, sinhá moça, quer sempre que eu vá à janela de noite? ...



- Por que razão, sinhá moça, quer sempre que eu vá à janela de noite? - Cecília fitou nela os olhos, e com voz fraca disse: - Tia Mônica, você é capaz de guardar um segredo? - Sou, respondeu a preta. Cecília contou então tudo; e quando acabou, disse: - Eis aqui porque eu te mando à janela: é para ver se vês o meu querido Antão; morreria ele? - Não, sinhá, respondeu Mônica; está vivo. A moça respirou. Depois ouvindo rumor no telhado, disse à preta que fosse ver o que era. - É ele, disse Mônica. - Ah! diz-lhe que eu estou de cama, mas que preciso falar-lhe. A preta deu conta do recado; Pedro Antão voltou para casa. Meditou nos meios de subir à casa de Cecília e vê-la um minuto que fosse. Por honra dele, devo dizer que hesitou muito tempo em cumprir a promessa...

Mendonça neste ponto inclinou-se mais para mim e disse:

- Não ouves?

- O que?

- Um rumor?

- São ratos. Deixa-te de vãos temores. Ouve a narração. Não te parece exata?

- Sim; parece. Tens uma penetração rara! Quem não dirá que isso não é a verdade?

- Ninguém pode dizê-lo.

- Continua.

- Assentou Pedro Antão em ir ver a enferma; para isso era preciso subir; para subir era necessário ter uma escada; e a escada só podia ser de seda. Por quem mandaria comprar uma escada de seda? Podia dizê-lo ao criado; mas isso era impossível; seria a vergonha. Pedro Antão resolveu sair ele mesmo...

- Sair?

- Foi a única vez que saiu depois da sua voluntária reclusão. Saiu, e foi encomendar uma escada de seda, a qual ficou pronta e veio dai a dias por mão do criado, mas enrolada de modo que o criado não soube o que era.

- Sim, o tio era prudente.

- Na primeira noite em que Pedro Antão subiu à casa houve na sua alma uma verdadeira luta. Eram os últimos lampejos da virtude; digo virtude, porque o ato de escalar uma janela constitui um crime para qualquer, quanto mais para um homem daquela força! Mas a paixão e a piedade venceram; teu tio atravessou o telhado com a escada debaixo do braço. A fiel Mônica lá estava e ajudou a preparar a escada; depois subiu Pedro Antão mais lesto que um menino trepando por uma mangueira acima. Não se descreve a cena do encontro dos dois amantes ao cabo de tanto tempo. Cecília estava mais pálida que o linho dos lençóis; o tio ajoelhou e derramou lágrimas de dor... Que cena aquela! oh! os que amaram sabem o que é aquilo!

Creio que fui tão patético nesta descrição, que o próprio Mendonça ficou comovido. Pela minha parte não o estava menos; davam então duas horas; tudo em volta de nós contribuía para a emoção de que nos achávamos possuídos.

- Vamos para casa, disse Mendonça.

- Ouve o resto. A visita do tio foi repetida nos seguintes dias. Parece que isso mesmo apressou o restabelecimento da moça. No dia em que Cecília ficou perfeitamente boa, disse-lhe Pedro Antão que era aquela a última visita. Cecília entrou a chorar. - "Não chores, disse teu tio; eu te amarei sempre; mas bem vês que é impossível a minha volta aqui. A tua doença explicava a minha audácia; a tua saúde..." - "Que temes tu? disse a moca; a opinião, quando vier a saber que nos amamos? Pois bem; Mônica assistirá as nossas entrevistas..." Teu tio mostrou-se severo e resoluto. A única coisa que lhe concedeu foi que viria conversar à janela: ficando ele pendurado na escada.

- Por que supões isto? perguntou-me Mendonça.

- Saberás adiante. Tudo o que até aqui tenho dito é a verdade; do estudo destes objetos que vemos a conclusão que tiro, é que só a minha narração pode explicar a vida de Pedro Antão.

- Continua.

- A promessa do tio foi cumprida. Todas as noites saía o homem de casa, levando a escada que era posta convenientemente para que ele subisse e fosse conversar com Cecília na posição em que Romeu e Julieta se separaram dando o último beijo e ouvindo o rouxinol... Queres ouvir o diálogo da despedida de Romeu?

- Não, vamos ao tio.

- Não descansou o pai de Cecília enquanto não lhe arranjou um casamento. Apresentou-lhe um dia um rapaz dizendo que era o seu noivo. Imagina o coração da pobre moça ao saber de semelhante notícia. Não ousou dizer abertamente ao pai que não queria o noivo; mas pediu para refletir três dias; e comunicou isso a teu tio. Imagina a dor do homem. Que luta aquela! O amor e o dever, - luta terrível à qual teu tio teria sucumbido se não fora a grande alma que Deus lhe deu. Que diria à moça?

- Eu carregava com ela.

- Bem, mas ele hesitou; pareceu-lhe que não podia santificar uma união condenada pela sociedade. Não queria perturbar o destino da moça que talvez fosse melhor do que se lhe afigurava a ela. Que fez então? disse-lhe que se casasse. Cecília recusou o conselho; teu tio insistiu; ela chorou. Que fazer diante das lágrimas de uma mulher? O homem pediu um adiamento de vinte e quatro horas. Terrível foi a noite e o dia que se seguiu a esta entrevista. Jogava-se o destino de Antão e de Cecília. Raptando a moça, ele ia constituir-se réu perante Deus e os homens. O momento era solene. A crise da vida chegara ao seu auge. Sobre a tarde tomou ele uma resolução suprema; raptar a moça, isto é, salvá-la das garras de um noivo a quem ela não amava, e dar-lhe a felicidade que ela almejava neste mundo. Comunicou o seu plano à rapariga; e assentou-se que daí a três dias se executaria o plano. A moça dormiu alegre como se no dia seguinte devesse entrar na bem-aventurança. Oh! o amor é capaz de grandes coisas! e quanta vez se cometeu crime com alma alegre só porque é o amor que nos impele para o mal!

- Bonito! murmurou Mendonça.

Irritou-me a interrupção e levantei-me.

- Onde vais?

- Não me queres ouvir.

- Quero; continua. Aplaudi a tua exclamação. Quero saber em que parou tudo isso.

- Quando o tio voltou para casa, encontrou junto à janela o criado. Todo o corpo lhe tremeu; estava descoberto. O criado tinha ouvido bulha e supondo serem ladrões subiu ao sótão, viu a janela aberta, e espantado, viu um vulto ao longe, e esperou. Quando descobriu que era o tio, compreendeu que alguma coisa havia, e arrependeu-se de ter subido. Quanto ao tio, passado o primeiro momento, voltou em si, desceu tranqüilamente e disse ao criado que se fosse deitar. O criado desceu sem dizer palavra; o teu tio veio tranqüilamente para esta sala e entrou a meditar no que devia fazer. Era forçoso confessar tudo ao criado; estando descoberto, já lhe não aparentava a discrição; antes tê-lo por amigo mostrando confiança. Assentou nisso. Mas dai a pouco entrou o receio a torturar-lhe a alma. Podia acaso contar com a discrição de criado, ainda quando lhe mostrasse confiança? O medo de ver-se descoberto lhe obumbrou a razão; o crime chama o crime. O relâmpago do crime lhe fuzilou na alma...

- Que fez?

- Decretou a morte do criado. Quem poderá dizer que longos foram os instantes passados naquela combinação de um crime que era o primeiro na escala dos crimes futuros! Ao cabo de uma hora, tomou uma vela, desceu a escada de mansinho, encaminhou-se ao quarto do criado. Este dormia profundamente; Pedro Antão lembrou-se de que o melhor meio era sufocá-lo; subiu outra vez e foi buscar um travesseiro. Desceu; o criado ainda dormia. Teu tio pôs-lhe o travesseiro sobre o pescoço e calcou com todas as forças. Surpreendido no sono com este ataque, o criado procurou defender-se; quis lutar; impossível... por um movimento enérgico Pedro Antão concluiu a morte começada.

- Onde viste sinais desse crime?

- Não vi sinais; mas é um crime lógico. Por que razão morreria o criado logo na véspera do rapto? Teu tio quis arredar uma testemunha ou um cúmplice; mas vai ouvindo.

- Triste morte foi essa!

- Terrível; teu tio subiu, atirou-se à cama, mas não dormiu; a noite foi cruel; quando chegou a madrugada ele respirou; podia ao menos afastar a memória do fato terrível da véspera. Do quintal chamou um vizinho, e pediu-lhe que fosse cuidar do enterro do criado. A tarde foi este enterrado, levando para a sepultura o segredo do crime...

- Mas, Pedro, é impossível que tu não saibas disto por outro modo que não o conjetural. Estás falando de maneira que pareces ter assistido a tudo... Sabias alguma coisa?

- Nada.

- Mas então não compreendo.

- Meu amigo; chama-se a isto penetrar além da superfície dos fatos. Vai ouvindo. A noite do enterro do criado, era a noite do rapto de Cecília. Tudo estava preparado. Pedro Antão aguardou silenciosamente a hora marcada por ele, isto é, meia-noite. O leitor facilmente calculará...

- Que leitor?

- Foi engano. Quero dizer que tu facilmente calcularás as emoções do namorado antes de cometer o rapto. Entretanto chegou a hora; Pedro Antão, que estava lendo para passar o tempo, apenas ouviu bater meia-noite, foi ao quarto, pegou na escada... Aqui entram os óculos de Pedro. Estava lendo, e para ler punha os óculos a fim de quebrar os raios da luz. Com a pressa e a preocupação do ato que ia cometer nem se lembrou de tirar os óculos; foi com eles até à outra sala, abriu a janela, saltou ao telhado e aproximou-se da casa de Cecília. Tudo estava silencioso; nenhum sinal de vida. Que aconteceria? Estaria descoberto o plano? Adoeceria a moça? Nesta incerteza esteve Pedro Antão durante dez mortais minutos. Abriu-se finalmente a janela, e a cabeça da moça apareceu. Teu tio deu sinal de que ele ali estava, e a preta disse-lhe que esperasse um pouquinho enquanto a ama completava os preparativos. Pedro Antão indagou a razão da demora. A preta respondeu que houvera visitas em casa, e que em virtude disso, Cecília não pôde sair da sala. Entrou a preta e teu tio esperou.

- Vê se pões a pequena cá para baixo.

- Ouve. Esperou teu tio outros dez minutos, ao cabo dos quais voltou a preta e o homem atirou a extremidade da escada que foi convenientemente presa em cima. Cecília apareceu e a vista da moça deu ânimo ao namorado. Disse-lhe ela que, para melhor efetuar a descida vestira umas calças do primo; e atirou para baixo duas trouxas. Continham roupa e vários objetos. Pedro Antão pôs as trouxas de lado, e disse à pequena que descesse. Ora, justamente quando a moça se preparava a descer, ouviu-se uma voz que dizia: Miserável! - Cecília deu um grito e entrou fechando a janela. Ficou em baixo Pedro Antão a procurar com os olhos de onde vinha a voz, até que um vulto se lhe aproximou. Era nem mais nem menos o pai de Cecília.

- Donde surgiu ele?

- Tinha percebido que a pequena tramava alguma coisa; foi espreitar pelo buraco da fechadura, e viu-a preparar as trouxas; desceu ao quintal e de lá ouviu a voz de teu tio; por meio de uma escada de mão trepou ao telhado no momento em que a moça ia pôr o pé fora da casa. Avalie-se o drama que se passou ali no telhado. O pai, armado com uma pistola, apontou-a ao peito de Pedro Antão; este viu iminente o seu fim. Quem poderia salvá-lo? - "Eu! gritou uma voz no meio das sombras".

- Quem era?

- Espera. O vulto desarmou o pai de Cecília e intimou-lhe a retirada; o velho quis recalcitrar, mas teve de obedecer à voz imperiosa do salvador de Pedro Antão. Tendo escapado por milagre à morte que o esperava, o homem voltou-se para o vulto e agradeceu-lhe aquela intervenção providencial. Depois pediu que entrasse com ele em casa para lhe explicar a razão de achar-se ali. Pedro Antão meditava uma mentira. O vulto respondeu simplesmente. - Eu sei tudo! - Sabe tudo? - Quem é o senhor? - Ninguém.

- Parodiou o Garrett.

- Convidou teu tio ao vulto para ir descansar alguns minutos em casa. O vulto aceitou. Atravessaram o telhado e entraram pela janela. Como estivesse escuro, Pedro Antão tomou um fósforo, que levara consigo para a volta e à luz quem havia ele de ver?

- Quem?

- Adivinha.

- Não sei.

- O criado?

- Sim.

- O defunto?

- Nem mais nem menos, o defunto.

- Essa agora!...

- Imagina o rosto do pobre homem, deu um grito e correu; o criado segurou-o ainda pelas abas do paletó; Pedro Antão fez um esforço, escapou-se-lhe das mãos, caíram-lhe os óculos, e ele foi rolando pela escada abaixo até cair morto.

- Que horror!