Havia uma escrava que servia à família de D. Tereza ...



Havia uma escrava que servia à família de D. Tereza. Todavia, Helena não consentia que os arranjos de certa natureza estivessem a cargo dessa escrava, e tomava a si a obrigação de cuidar deles. Assim, por exemplo, era Helena quem se encarregava de pôr em ordem o gabinete de Teófilo. Foi em uma dessas ocasiões, estando ausente o poeta, que Helena achou em cima de uma mesa um quarto de papel onde estavam escritas algumas linhas paralelas e de tamanho desigual. São versos, pensou a moça. Picada de curiosidade, pegou no papel e leu o que estava ali. Reconheceu a letra de Teófilo, e, mais ainda, reconheceu a alma dele. A moça tinha os olhos úmidos quando acabou de ler o papel; beijou-o e tornou a deixá-lo no mesmo lugar.

Quando o poeta voltou, reparou no esquecimento em que caíra de não guardar os versos; mas de modo algum suspeitou que os tivessem lido. Guardou-os onde guardava os outros.

Helena, uma vez descoberto o mistério, não parou aí. No dia seguinte cresceu-lhe a curiosidade.

- É impossível, pensava ela, que ele só tenha escrito estes versos; eu bem me lembro que ele fez alguns quando eu era criança e os leu; lá há de haver outros.

E deitou-se a procurar.

Tanto procurou, que encontrou em uma das gavetas uma pequena pasta cheia de autógrafos. Eram as inspirações do poeta traduzidas na linguagem de Petrarca, e ali deixadas sem que ainda o poeta as polisse da primitiva aspereza.

A moça leu e releu os versos; muitas vezes enxugou os olhos. Havia nas composições de Teófilo um eco às secretas aspirações da alma dela. Era que a situação de ambos era quase a mesma.

A moça, quando acabou de ler todos aqueles escritos poéticos, restituiu-os à pasta e colocou esta na gaveta de modo que não deixasse suspeitar a violação inocente que acabava de cometer.

Depois saiu.

Teófilo não reparou em nada.

Tal é a explicação do riso da moça, que, depois de ouvir muitas vezes a resposta misteriosa do poeta, chegou a compreender-lhe o alcance e ria-se à socapa, como quem dizia que o ponto de admiração de que falava o moço não o era para ela.

Estavam as coisas neste pé, quando uma tarde, ao voltar para casa, Teófilo encontrou no caminho um amigo que se chegou a ele e perguntou-lhe:

- Tens que fazer sábado?

- Não muito; por que?

- Então dá-me a tua palavra de honra que aceitas um convite meu.

- Convite para que?

- Convite para uma partida.

- Não posso.

- Por que?

- Porque não quero ir só a divertimento algum.

- Mas...

- E minha família não pode ir.

- Que singularidade!

- É a coisa mais que natural do mundo. O que é talvez singularidade é a franqueza com que te digo que minha família não pode ir por lhe faltarem os meios de ostentar o rigor que essas coisas requerem.

- Ora!

Teófilo sorriu-se.

Depois perguntou:

- Achas esquisito?

- Acho. É a tua última palavra?

- É.

- Bem.

E como o outro se afastasse tristemente, Teófilo deu um passo para ele e perguntou-lhe se esta escusa o magoava.

- Sim, respondeu o amigo. Vou ser indiscreto. Eu e alguns outros imaginamos convidar-te para esta partida a ver se te distraías e saías da tristeza em que andas. Era um serviço de amigo. Convencionamos nada dizer-te, mas eu sou forçado a isto. Não queres? Dou por finda a minha missão.

- Espera, disse Teófilo.

O moço deteve o passo.

Teófilo refletiu um bocado e respondeu:

- Pois sim, vou. Agradeço a vocês o cuidado que tomaram por mim.

- Muito bem.

- Onde é a partida?

- É em casa do comendador N... Conheces?

- Falamo-nos duas vezes.

- É quanto basta. Além de que ele próprio insta para que tu vás. A partida é sábado.

- Até sábado.

Separaram-se os dois.