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Os namoros dos telhados são pouco sabidos das pessoas ... |
Os namoros dos telhados são pouco sabidos das pessoas que só têm namorado nas ruas; é por isso que não têm igual fama. Mais graciosos são, e romanescos também. Eu já estava acostumado a eles. Tivera muitos, de sótão a sótão, e mais próximos um do outro. Víamo-nos os dois, ela estendendo as roupas molhadas da lavagem, eu a folhear os meus compêndios. Risos de cá e de lá, depois rumo diverso, um pai ou mãe que descobria a troca de sinais e mandava fechar as janelas, uma doença, um arrufo e tudo acabava. Desta vez, justamente quando eu não podia distinguir as feições da moça, nem ela as minhas, é que o namoro estava mais firme e continuava. Talvez por isso mesmo. O vago é muito em tais negócios; o desconhecido atrai mais. Assim foram decorrendo dias e semanas. Já tínhamos horas certas, dias especiais em que a contemplação era mais longa. Eu, depois dos primeiros tempos, temi que houvesse engano da minha parte, isto é, que a moça olhasse para outro sótão, ou simplesmente para o mar. O mar não digo: não prenderia tanto, mas a primeira hipótese era possível. A coincidência, porém, dos gestos e das atitudes, a espécie de respostas dadas à espécie de perguntas que eu lhe fazia, trouxeram-me a convicção de que realmente éramos nós dois os namorados. Um colega da Escola, por esse tempo meu camarada intimo, foi o confidente daquele mistério. - Josino, disse-me ele, e porque é que não vais ao morro do Castelo? - Não sei onde fica a casa. - Ora essa! Marca bem a posição cá de baixo, vê as que lhe ficam ao pé e sobe; se não estiver na ladeira, há de estar no alto em algum lugar... - Mas não é só isto, disse eu; penso que se lá for e achar a casa é o mesmo que nada. Poderei conhecê-la, mas como é que ela saberá quem eu sou? - É boa! Tu ficas conhecendo a pessoa, e escreve-lhe depois que o moço assim e assim lhe passou pela porta, em tal dia, a tantas horas, é o mesmo do sótão da rua da Misericórdia. - Já pensei nisso, respondi dali a um instante, mas confesso-te que não quis tentar nada. - Por que? - Filho, o melhor deste namoro é o mistério... - Ah! poesia! - Não é poesia. Eu, se me aproximo dela, posso vir a casar, e como me hei de casar sem dinheiro? Para ela esperar que eu me forme, e arranje um emprego... - Bem; é então um namoro de passagem, sempre dá para versos e para matar o tempo. Deitei fora o cigarro, apenas começado (estávamos no Café Carceler), e dei um murro no mármore da mesa; acudiu o criado a perguntar o que queríamos, respondi-lhe que fosse bugiar, e após alguns instantes declarei ao meu colega que não pensava em matar tempo. - Vá que faças versos; é um desabafo, e ela merece-os; mas matar o tempo, deixá-la ir aos braços de outro... - Então... queres... raptá-la? - Oh! não! Tu bem sabes o que eu quero, Fernandes. Eu quero e não quero; casar é o que eu quero, mas não tenho meios, e estou apaixonado. Esta é a minha situação. - Francamente, Josino; fala sério, não me respondas com chalaças. Tu estás deveras apaixonado por essa moça? - Estou. - Essa moça, quero dizer, esse vulto, por que tu não sabes ainda se é moça ou velha. - Isso vi; a figura é de moça. - Em suma, um vulto. Nunca lhe viste a cara, não sabes se é feia ou bonita. - É bonita. - Adivinhaste? - Adivinhei. Há um certo sentido na alma dos que amam que faz ver e saber as coisas ocultas ou obscuras, como se fossem claras e patentes. Crê, Fernandes; esta moça é bela; é pobre, e está doida por mim; eis o que te posso afirmar, tão certo como aquele tílburi estar ali parado. - Que tilburi, Josino? perguntou ele depois de puxar uma fumaça ao cigarro. Aquilo é uma laranjeira. Parece tilburi por causa do cavalo, mas todas as laranjeiras têm um cavalo, algumas dois; é a matéria do nosso segundo ano. Tu mesmo és um cavalo pegado a uma laranjeira, como eu; estamos ambos ao pé de um muro, que é o muro de Tróia, Tróia é dos troianos, e a tua dama naturalmente cose para fora. Adeus, Josino, continuou ele erguendo-se e pegando o café; não dou três meses que não estejas doido, a menos que o doido não seja eu. - Vai caçoar para o diabo que te leve! exclamei furioso. - Amém! Este Fernandes era o chalaceiro da Escola, mas todos lhe queriam bem e eu mais que todos. No dia seguinte foi visitar-me ao sótão. Queria ver a casa do morro do Castelo. Verifiquei primeiro se ela estava à janela; vendo que não, mostrei-lhe a casa. Reparou bem onde era, e acabou dizendo-me que ia passar por lá. - Mas eu não te peço isto. - Não importa. Vou descobrir a caça, e direi depois se é má ou boa. Ora espera; lá está um vulto. - Entra, entra, disse-lhe puxando por ele. Pode ver-te e desconfiar que estou publicando o nosso namoro. Entra e espera. Lá está, é ela... A vista do meu colega não dava para descobrir de baixo e de longe as feições da minha namorada. Fernandes não pôde saber se ela era feia ou bonita, mas concordou que o ar do corpo era elegante. Quanto a casa estava marcada; iria rondar por ela, até descobrir a pessoa. E por que não comprava eu um binóculo? perguntou-me. Achei-lhe razão. Se na ocasião achasse igualmente dinheiro teria o binóculo na manhã seguinte; mas, na ocasião faltava-me dinheiro e os binóculos já então não eram baratos. Respondi com a verdade, em primeiro lugar; depois aleguei ainda a razão do vago e do incerto. Era melhor não conhecer a moça completamente. Fernandes riu-se e despediu-se. |
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