A situação não mudou. Os dias e as semanas não fizeram mais que apertar-nos um ao outro ...



A situação não mudou. Os dias e as semanas não fizeram mais que apertar-nos um ao outro, sem estreitar a distância. Mostras e contemplações de longe. Cheguei aos sinais de lenços e ela também. De noite, tinha vela acesa até tarde; ela se não ia até à mesma hora, chegava às dez, uma noite apagou a vela às onze. De ordinário, apesar de já não ver a luz dela, conservava a minha acesa para que ela dormisse tarde, pensando em mim. As noites não foram assim seguidas, desde principio; tinha hábitos noturnos, passeios, teatros, palestras ou cafés, que eram grande parte da minha vida de estudante; não mudei logo. Mas ao cabo de um mês, entrei a ficar todas as noites em casa. Os outros estudantes notavam a ausência; o meu confidente espalhava que eu trazia uns amores secretos e criminosos.

O resto do tempo era dado às musas. Convocava-as - elas vinham dóceis e amigas. Horas e horas enchíamos o papel com versos de vária casta e metro, muitos dos quais eram logo divulgados pelas gazetas. Uma das composições foi dedicada à misteriosa moça do Castelo. Não tinham outra indicação; aquela pareceu-me bastante ao fim proposto, que era ser lido e entendido. Valha-me Deus! Julguei pelas suas atitudes daquele dia que realmente os versos foram lidos por ela, entendidos finalmente e beijados.

Chamei-lhe Pia. Se me perguntares a razão deste nome, ficarás sem resposta; foi o primeiro que me lembrou, e talvez porque a Ristori representava então a Pia de Tolomei. Assim como chamei Silvia à outra, assim chamei Pia a esta; mania de lhes dar um nome. A diferença é que este se prestava melhor que o outro a alusões poéticas e morais; atribuí naturalmente à desconhecida a piedade de uma grande alma para com uma pobre vida, e disse isto mesmo em verso, - rimado e solto.

Um dia, ao abrir a janela, não vi a namorada. Já então nos víamos todos os dias, a hora certa, logo de manhã. Posto que eu não tivesse relógio, sabia que acordava cedo, à mesma hora; quando erguia a vidraça, já a via à minha espera, no alto. Daquela vez esperei; o tempo correu, saí para o almoço e para a Escola. O mesmo no dia seguinte. Supus que seria ausência ou moléstia; esperei. Passaram-se dois dias, três, uma semana. Fiquei desesperado; não exagero, fiquei fora de mim. E não pude dissimular esse estado; o meu confidente da Escola desconfiou que havia algum a coisa, eu contei-lhe tudo. Fernandes não acabava de crer.

- Mas como, Josino? Pois uma criatura que nem sequer conheces... é impossível! A verdade é que nunca a viste; mirar de longe um vulto não é ver uma pessoa.

- Vi-a, gosto dela, ela gosta de mim, aí tens.

- Confessa que amanhã, se a encontrares na rua, não és capaz de a conheceres.

- O meu coração há de conhecê-la.

- Poeta!

- Matemático!

Tínhamos razão os dois. Não é preciso explicar a afirmação dele; explico a minha. O meu amor, como vistes, era puramente intelectual; não teve outra origem. Achou-me, é verdade, inclinado a amar, mas não brotou nem cresceu de outra maneira. Tal era o estado de minha alma, - e porque não do meu tempo? - que assim mesmo me governou. Acabei amando um fantasma. Vivi por uma sombra. Um puro conceito - casada ou solteira, feia ou bonita, velha ou moça - quem quer que era que eu não conheceria na rua, se a visse, enchia-me de saudades. Fiquei arrependido de não a ter buscado no morro; haver-lhe-ia escrito, saberia quem era, e para onde fora, ou se estava doente. Esta última hipótese sugeriu-me a idéia de ir ao morro procurar a casa. Fui; ao cabo de algum tempo e trabalho dei com a casa fechada. Os vizinhos disseram-me que a família saíra para um dos arrabaldes, não sabiam qual deles.

- Está certo que é a família Vieira? perguntei eu cheio de maquiavelismo.

- Vieira? Não, senhor; é a família Maia, um Pedro Maia, homem do comércio.

- Isso mesmo; tem loja na rua de São Pedro, São Pedro ou Sabâo...

- A rua não sabemos; não se dá com vizinhos. Há de crer que só ultimamente nos cumprimentava? Muito cheio de si. Se é seu amigo, desculpe...

Fiz um gesto de desculpa, mas fiquei sem saber a loja do homem, nem o arrabalde para onde fora; sabia só que tornaria à casa, e era muito. Desci animado. Bem; não a perdi, ela volta, disse comigo.

E terá pensado em mim?

Resolvi pela afirmativa. A imaginação mostrou-me a desconhecida vendo passar as horas e os dias, onde quer que estava com a família, a cuidar do desconhecido da rua da Misericórdia. Talvez me tivesse feito na véspera da partida algum sinal que não pude ver. Se cuidou que sim, estaria um pouco mais consolada, mas a dúvida poderia assaltá-la, e a inquietação complicaria a tristeza.

Entramos nas férias. A minha idéia era não ir a província, ficar por qualquer pretexto, e esperar a volta da minha diva. Não contava com a fatalidade. Perdi minha mãe; recebi carta do meu pai, dizendo estar à minha espera. Haveis de crer que hesitei? Hesitei; mas a ordem era imperiosa, a ocasião triste, e meu pai não brincava.

- Vou, não tenho remédio, mas...

Como dizer à misteriosa Pia que ia à província, que voltaria dois ou três meses depois, e que me esperasse? A princípio lembrou-me incumbir o meu colega Fernandes de a avisar, de manter o sacro fogo, até que me achasse de volta. Fernandes era assaz engenhoso e tenaz para desempenhar-se disto; mas abri mão dele, por vergonha. Então lembrou-me outra coisa; não deixaria o sótão, conservá-lo-ia alugado, mediante a garantia do correspondente de meu pai, a pretexto de não haver melhor lugar para residência de estudante.

Quando voltasse, já ela estaria ali também. Não se enganaria com outro, porque nunca a janela se abriria na minha ausência; eu, apenas tornasse, recomeçaria a conversação de outro tempo. Isto feito, meti-me no vapor. Custa-me dizer que chorei, mas chorei.