Há encontros curiosos. Enquanto eu conversava com Margarida ...



Há encontros curiosos. Enquanto eu conversava com Margarida, e evocava os dias de outrora, Estela compunha versos, que me mostrou no dia seguinte, com este título: Que é o passado? Imediatamente peguei do lápis, respondi com outros que denominei: Nada. Não os transcrevo por não me parecerem dignos do prelo; falo dos meus. Os dela eram bons, mas não devo divulgá-los. São segredos do coração. Digo só que a modéstia de Estela fê-los achar inferiores aos meus, e foi preciso muito trabalho para convencê-la do contrário. Uma vez convencida, releu-os à minha vista três e quatro vezes; pelo meio da noite, dei com os olhos dela perdidos no ar, e, como tinha ciúmes, perguntei-lhe se pensava em alguém.

- Que tolice!

- Mas...

- Estava recitando os versos. Você acha mesmo que são bonitos?

- São muito bonitos. Recite você.

Peguei dos versos de Estela e recitei-os outra vez.

O prazer com que ela os ouvia foi, não digo enorme mas grande, muito grande; tão grande que ainda os recitei uma vez mais.

- São lindos! exclamei no fim.

- Não diga isso!

- Digo sim; são deliciosos.

Não acreditou, posto sorrisse; o que fez foi recitar os versos ainda uma vez ou duas, creio que duas. Eram só três estrofes; vim de lá com elas de cor.

A poesia dava à minha namorada um toque particular. Quando eu estava com o Fernandes dizia-lhe isso, ele dizia-me outras coisas de Margarida, e assim trocávamos as nossas sensações de felicidade. Um dia comunicou-me que ia casar dali a três meses.

- Assentou-se tudo ontem. E tu?

- Eu vou ver, creio que breve.

Casaram no dito prazo. Lá estive na igreja do Sacramento. Ainda agora penso como é que pude assistir ao casamento da moça do Castelo. Verdade é que estava preso à outra, mas as recordações, qualquer que fosse o meu atual estado, deviam fazer-me repugnante aquele espetáculo da felicidade de um amigo, com uma pessoa que... Margarida sorria encantada para ele, e aceitou os meus cumprimentos sem a menor reminiscência do passado... Sorriu também para mim, como qualquer outra noiva. Um tiro que levasse a vida ao meu amigo seria duro para mim, far-me-ia padecer muito e longo; mas houve um minuto, não me recordo bem qual, ao entrar ou sair da igreja, ou no altar, ou em casa, minuto houve em que, se ele cai ali com umas cãibras, eu não amaldiçoaria o céu. Expliquem-me isto. Tais foram as sensações e idéias que me assaltaram e com algumas delas sai da casa deles, às dez horas da noite: iam dançar.

- Então a noiva estava bonita? perguntou-me Estela no dia seguinte.

- Estava.

- Muito?

Refleti um instante e respondi.

- Menos que você quando cingir o mesmo véu.

Estela não acreditou, por mais que lhe jurasse, que tal era minha convicção: eram cumprimentos. Tinha justamente composto na véspera uma poesia, sobre o assunto, mas tão ruim, que não a mostraria; disse apenas o primeiro verso:

Se hei de cingir um véu de noiva ou freira...

- Diga os outros!

- Não digo, que não prestam.

Como eu teimasse, e ela quisesse provar que não prestavam, recitou-os assim mesmo, e confesso que não os achei tão ruins. Foi o nosso primeiro e sério arrufo. Estela suspeitou que eu estava caçoando, e não me falou durante uns vinte minutos. Afinal reconciliamo-nos. Como eu lhe não pedisse os versos, viu nisso a prova de que eles não prestavam para nada, e disse-mo. Provei-lhe o contrário, arrancando-lhe o papel da mão.

- Amanhã lhe dou cópia deles.

Copiei-os à noite, sonhei com ela, e no dia seguinte levei-lhe a cópia. Encontrei-a em caminho, com algumas amigas; iam ver um grande casamento. Acompanhei-as; à porta da igreja estavam ricas carruagens, cavalos magníficos, librés de bom gosto, povo à porta, povo dentro. Os noivos, os pais, os convidados esperavam o padre, que apareceu alguns minutos depois. Compreendi o gosto das moças em ver casamentos alheios; também eu estava alvoroçado. O que ninguém ali teve, creio e juro, foi a impressão que recebi quando dei com os olhos na noiva; era nada menos que a moça do teatro, a quem eu dera o nome de Silvia, por lhe não saber outro. Só uma vez a vira, mas as feições não se apagaram da memória apesar de Margarida, apesar de Estela. O estremeção que tive não foi visto por ninguém: todos os olhos eram poucos para ela e para ele. Quem era ele? Um jovem médico.

Não houvera entre mim e esta moça mais que o encontro daquela noite do teatro; mas a circunstância de assistir ao seu casamento, como já assistira ao de Margarida, dava-lhe agora um cunho especial. Estaria eu destinado a ver ir para os braços alheios os meus sonhos mais íntimos? Assisti ao casamento de Sílvia o menos que pude, olhando para outras pessoas; afinal tudo acabou, os noivos, os pais e os convidados saíram; Estela e as amigas foram vê-los entrar nas carruagens.

- Que é que tens? perguntou-me ela na rua.

- Dir-lhe-ei depois.

- Quando?

- Logo.

Em casa disse-lhe que pensava no dia em que fossemos objeto da curiosidade pública, e a nossa felicidade se consumasse assim.

- Não tardará muito, acrescentei, uma vez formado.

O olhos dela confirmaram este acordo, e a musa o fez por versos que foram dos mais belos que li da minha poesia.

Sim, o casamento aparecia-me como uma necessidade cada vez maior. Tratei de ir preparando as coisas de modo que, uma vez formado, não me demorasse muito. Antes disso, era impossível que meu pai consentisse. Estela estava por tudo; assim mo disse em prosa e verso. A prosa era a das nossas noites de conversação, ao canto da janela. O verso foi o de um soneto em que se comparava à folha, que vai para onde o vento a leva; o fecho era este:

Eu sou a folha, tu serás o vento.