Espevitada! Dai a algumas semanas a lembrança deste nome ...



Espevitada! Dai a algumas semanas a lembrança deste nome enchia-me de remorsos; estava apaixonado por ela. Achava-lhe os versos deliciosos, a figura angélica, a voz argentina (rimando com divina, musa divina) toda ela uma perfeição, uma fascinação, uma salvação. Os versos que fiz por esse tempo, não têm conta na aritmética humana. A musa entrou-me em casa e pôs fora as matemáticas. Ficou ela só, e os seus metros e consoantes que ainda não eram ricos nem raros como agora. As flores que rimei com amores, os céus que rimei com véus, podiam receber outros mundos e cobri-los a todos. Ela era menos fecunda que eu, mas os versos continuavam a ser deliciosos. Já então eu os declarava tais com entusiasmo.

- Não está caçoando?

- Não, meu anjo! Pois eu hei de...? São lindíssimos; recite-os outra vez.

E ela recitava, e eu ouvia com os olhos em alvo. Projetamos imprimir e publicar os nossos versos em um só volume comum, com esse título: Versos dela e dele. A idéia foi minha, e ela gostou tanto que começou logo a copiá-los em um livro que tinha em branco. As composições seriam alternadas, ou as de um de nós formariam uma parte do livro? Nesta questão gastamos muitos dias. Afinal resolvemos alterná-los.

- Uns serão conhecidos pela própria matéria, outros pela linguagem, disse eu.

- Quer dizer que a minha linguagem não presta para nada?

- Que idéia, minha Estela!

- E acho que tem razão: não presta.

Como estávamos sós, ajoelhei-me e jurei pelo céu e pela terra, pelos olhos dela, por tudo o que pudesse haver mais sagrado que não pensava assim. Estela perdoou-me e começou a cópia dos versos.

Nisso estávamos, eu ia pouco à Escola, e via raras vezes o Fernandes; este um dia levou-me a um café, e disse-me que ia casar.

- Tu?

- Sim; caso-me no principio do ano, depois de tomar o grau, e mal sabes com quem.

- Pois também eu caso-me, disse-lhe daí a alguns segundos.

- Também?

- Ainda não está pedida a noiva, mas é certo que me caso, e não espero o fim dos estudos. Há de ser daqui a meses.

- Não é a do Castelo?

- Oh! não! Nem pensei mais nisso, é outra, e falta só pedir-lhe autorização e falar ao pai. É filha de um negociante. Conheci-a a bordo.

- Que singular caso! exclamou o Fernandes. Sabes tu com quem me caso? com a moça do Castelo.

Explicou-me tudo. Sabendo que a noiva morara no Castelo, falou-lhe de mim e do namoro; ela negou, mas ele insistiu tanto que Margarida acabou confessando e rindo muito do caso.

- Sabes que não sou de ciúmes retrospectivos. Queres tu vê-la? Agora que vocês dois estão para casar, e nunca se conheceram, há de ser curioso verem-se e conhecerem-se; eu direi a Margarida que és tu, mas que tu não sabes; tu ficas sabendo que é ela e que ela não sabe.

Poucos dias depois, Fernandes levou-me à casa da noiva. Era na rua do Senado, uma família de poucos meios, pai, mãe, duas filhas, uma de onze anos. Margarida recebeu-me com afabilidade; estimava muito conhecer um amigo e colega do noivo, e tão distinto como lhe ouvira dizer muitas vezes. Não respondi nada; quis honrar a escolha da esposa que o meu Fernandes fizera, mas não achei palavra que exprimisse este pensamento. Todo eu era, ou devia ser uma boca aberta e pasmada. Realmente, era uma bela criatura. Ao vê-la, recordei os nossos gestos de janela a janela, estive a ponto de lhe atirar, como outrora, o beijo simbólico, e pedir-lhe que levantasse os braços. Ela não respondera nunca aos beijos, mas erguia os braços de si mesma por um instinto estético. E as longas horas, as tardes, as noites... Todas essas reminiscências vieram ali de tropel, e por alguns minutos encheram-me a alma, a vista, a sala, tudo o que nos cercava,

- O doutor fala-me muita vez no senhor, insistiu Margarida.

- Fala de um amigo, murmurei finalmente.

Tendo-me ele dito que ela sabia ser eu o namorado do sótão pareceu-me ver em cada gesto da moça alguma repetição daquele tempo. Era ilusão; mas que esperar de uma alma de poeta, perdida em matemáticas? Sai de lá com recordações do passado. A vista da rua e do presente, e sobretudo a imagem de Estela refizeram aqueles fumos.