|
João do Rio A AVENTURA DE ROZENDO MOURA |
Na rua era um fragor. As casas pareciam abaladas pelo barulho dos tambores, das cornetas, dos bombos, da vozearia infernal. Rozendo Moura, muito maldisposto, estava a vestir-se. No seu encantador gabinete de laca branca com estofo cor-de-rosa e uma infinidade de objetos de cristal e marfim por sobre os móveis, nós insistíamos. - Não me deixarão vocês? - Rozendo! Uma terça-feira de carnaval! - Mas chove... - Tanto melhor. A Berta Worms espera-nos! - Essa mulher desagrada-me... - Não há mulheres desagradáveis. As mulheres contentam-se com ser, como dizia o dramaturgo - a razão e o impedimento de todas as nossas obras... - Pois eu julgo-as portadoras de fatalidade e nós, mesmo contra a vontade, as placas sensíveis dessas correntes de Mistério. - A Berta dá então azar? - A mim, pelo menos. Explico o meu caso. Pode dar sorte a outros. Comigo, há mulheres que, aproximadas, são motivo de prosperidade. Outras baralham-me a vida, por mais que me amem. Tenho de brigar a murros com desconhecidos, negócios quase realizados periclitam, a saúde fenece... Assim deve ser com vocês, com todos os homens. Infelizmente não sou excepcional. Há de resto uma espécie de mulheres pior - a que age sobre os homens como alucinação, fazendo-os participar da própria desgraça. Dessas, quem escapa uma vez, não toma... - Fetiche! - É que vocês nunca se lembram da mulher que os acompanha... - A mulher fatal? - Todas são fatais. Houve uma pausa breve, enquanto Rozendo Moura dava o laço da gravata, diante do espelho. - O Rozendo, já escapastes de alguma? indagou Jaques Ciro, um prodígio de ceticismo, porque tinha apenas vinte anos. - Já. Olha. O carnaval faz-me lembrar a mais horrenda semana da minha vida, a semana em que eu participei integralmente da horrível fatalidade... Nesse momento, o rumor vindo da rua tornou-se tão grande, que tivemos de ir à janela. Chovia a cåntaros. Mas, embaixo, a multidão delirava. Eram gritos, uivos, gargalhadas, assobios, guinchos de cornetins, rufos de tambores, sacolejos de adufes, estalos de pratos. E os sons agoniantes dos bombos bombardeando as fachadas... Rozendo recolheu com desgosto, atirou-se no divã. - Não, positivamente não vou!... - Recordaste a semana horrível? tornou Jaques Ciro. - Sim. E tanto mais atroz, quanto até hoje não compreendo como e por que agi nesses oito dias. Foi há cinco anos e por mais que pense, não explico. Macabro. Misterioso. Assustador. Recorda-se você da Corina Gomes, uma rapariguita brasileira, que freqüentava os clubes? - Há cinco anos, Rozendo? Não há memória que alcance uma rapariguita brasileira a cinco anos de diståncia. Depois eu estava na Europa... - Felizardo! - Infeliz, porque voltei... - Pois a Corina era magra, lívida, tomava cocaína. Eu achava-a antipática. Nunca trocáramos senão monossílabas, o instinto dizia-me que essa mulher seria a desagradável aventura da minha vida. Como? Não sabia! |
|
|
|
|