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Examinamos os óculos que nada particular indicavam ... |
Examinamos os óculos que nada particular indicavam; tinham asas grossas e vidros azuis sem grau. Conheci que era uma quarta espécie de óculos; usava-os Pedro Antão para abrandar os raios da luz quando trabalhasse ou lesse de noite. Um dos vidros estava rachado. Seguimos levando os óculos. Nenhuma mobília tinha a sala do fundo. Ao fundo havia uma janela que dava para o telhado. Estava fechada com uma pequena aldraba. - Aqui não há que ver, disse Mendonça querendo voltar. - Pelo contrário, disse eu. - Que é? - Vês isto? O objeto que eu mostrava a Mendonça era uma escada de seda atirada a um canto. Estava gasta pelo uso e estragada pelo desuso. - Creio que isto é alguma. Vejamos a janela. Abri a janela, que era baixa. Dava para o telhado da própria casa. Olhei em redor; todas as casas eram baixas, exceto uma que ficava à esquerda, que era um sobrado e tinha uma janela que dava para o telhado. Junto da janela do sótão havia algumas telhas quebradas. Fechei a janela, e disse rindo a Mendonça: - Já me não escapa o homem! - És um visionário, foi a única resposta de Mendonça. Quando íamos a sair, Mendonça deu um grito. - Que é? - Vê. Olhei e vi a um canto da sala dois olhos verdes fitos sobre nós. Quis aproximar-me; Mendonça agarrou-me pelas abas do paletó. Fiz um esforço e fui até o canto ver o que eram aqueles olhos. Dei uma gargalhada. Era um gato preto que ali se achava, o qual, assustado com a gargalhada, deitou a correr, desceu a escada e não apareceu mais. - Começo a tremer, disse Mendonça; que quer dizer este gato aqui em cima? - Uma destas duas coisas; ou era companheiro do homem nos sortilégios; ou é um gato da vizinhança que se acostumou a vir aqui passar a noite em procura de ratos. - Será, será. - Inclino-me à segunda hipótese, porque, ainda que eu suponha teu tio amante de feitiçarias, creio que não é essa a parte mais importante da vida dele. - Qual será então? - Meu caro, temos já todos os elementos de que compor um romance; vamos para a outra sala. Quando ali chegamos, sentei-me tranqüilamente, acendi um charuto, e brincando com os óculos de Pedro Antão, comecei a falar. - Viste aqui uma casa velha, trastes velhos, ares velhos, nada mais. Eu vi aqui dentro uma história misteriosa. Organizar no vácuo não é coisa que todos possam fazer. Vejamos se não me achas razão. Mendonça sentou-se e eu comecei: - Sabes a razão da reclusão do tio? - Não, respondeu o meu companheiro. - Foi uma paixão? Não te rias. Eu imagino que teu tio se apaixonou por alguma dama formosa. Sabes donde concluo isto? Do gosto pelas artes. As artes substituem os amores, quando estes são impossíveis. Amou, e não querendo ou não podendo casar com ela, retirou-se por aqui. A solidão e a paixão começaram a atuar na sua imaginação. Olha os livros que ele lia; vê estes dois bustos de Cristo e de Satanás; olha estes objetos de feitiçaria esparsos no chão; tudo isto quer dizer que a religião nem a filosofia bastavam à alma do tio e quando a filosofia e a religião não podem triunfar de uma alma, triunfa a superstição. Que te parece? - Um conto para passar o tempo. - Ouve o resto. Ao cabo de um ou dois anos, Pedro Antão recebeu uma pequena cartinha... - Ah! onde está? - Não sei; mas recebeu. Talvez a encontremos dentro desta secretária. O bilhete era da mulher amada, e dizia provavelmente que tendo ele fugido, vinha ela em busca dele. - E veio? - Veio morar na vizinhança, naquele sobrado cujos fundos vimos pela janela do sótão. O tio não respondeu à carta; a dama que eu chamarei Cecília esperou debalde a resposta. Nova carta: novo silêncio. Cecília no furor da paixão, veste-se um dia com uma mantilha e entra por aqui a pretexto de vir buscar esmolas para os indigentes da paróquia. - Mande entrar quem é, disse Pedro Antão. A rapariga entrou, e quando se achou a sós com o tio, descobriu o rosto. - Céus! és tu! - Sim sou eu; vim porque me recusavas; amo-te... - Mas desgraçada! não sabes que o teu ato é uma loucura e um crime? - É uma virtude pois que amo. O tio pôs o rosto nas mãos; estava desesperado. - Compreendo. E depois? - Procurou dissuadi-la dos planos que ela concebera; a única coisa que conseguiu foi dar sua palavra de que iria vê-la à casa ou ao menos conversar de fora. - Mas eu não sei como possa lá ir objetou Pedro Antão. - A janela do teu salão dá para os fundos da minha casa. Sobe ao telhado e eu conversarei da janela. - Pois sim respondeu teu tio. - Supões que ele respondeu assim? - Com certeza. - O tio cumpriu então a promessa? - Cumpriu. Quando toda a vizinhança estava recolhida, trepava ele ao telhado e ia conversar por baixo da janela de Cecília até que vinha a madrugada e Pedro Antão voltava para casa com o coração mais tranqüilo... - E uma constipação no lombo. - Não te rias, Mendonça; és um espírito fútil. Ouve o resto, e verás que tudo se explica; eu aprendi a arte de interpretar as coisas mais insignificantes. Ora, atende; atende e concordarás comigo. - Continua. - Assim se passaram os dias, as semanas, os meses; era um idílio renouvelé de Roméo. Um dia provavelmente o pai da moça percebeu que alguém costumava perlustrar os telhados, e tendo ouvido conjugar o verbo amar todas as noites sempre no indicativo do tempo presente, resolveu pôr em cena um quinto ato de Crebillon; comprou uma pistola... - E matou o tio? - Não! - Felizmente. - Pôs-se de emboscada; apenas apareceu um vulto, disparou a pistola... Dois gritos agudos acompanharam o som do tiro; Pedro Antão correu a meter-se em casa. Cecília caiu redondamente no chão. - Morta? - Desmaiada. Acudiu toda a família. O pai acudiu também; mandou chamar um médico e deram-se à pequena os primeiros cuidados que a situação exigia. Albuquerque (deve ser o nome do pai) era homem de costumes severos; guardou uma repreensão para a filha depois que ficasse boa. A menina ficou no quarto com a mãe e uma escrava velha, a tia Mônica. Aqui não te posso dizer quanto tempo esteve ela gravemente enferma; o que te afirmo é que, apenas tornou em si, e pôde lembrar-se do episódio do tiro, disse que tivera um grande pesadelo, e a isso devera o desmaio. A mãe engoliu a pílula; o pai achou-a amarga demais. Passaram-se os dias; Cecília sempre de cama, ficava então só com a escrava. Uma noite, disse-lhe a escrava: |
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