Tudo o que vos acabo de dizer é vergonhoso ...



Tudo o que vos acabo de dizer é vergonhoso, como plano, e dá idéia de uma sensibilidade mui pouco matemática; mas, sendo verdade, como é, e consistindo nesta o único interesse da narração, se algum lhe achais, força é que vos diga o que se passou naquele tempo.

Embarquei, e fui para a província. Meu pai achou-me forte e belo, disse que tinha boas notícias minhas, tanto de rapaz como de estudante, dadas pelo correspondente e outras pessoas.

Gostei de ouvi-lo e cuidei de confirmar a opinião, metendo-me a estudar nas férias. Dois dias depois, declarou-me ele que estava disposto a fazer-me trocar de carreira. Não entendi. Ele explicou-me que, bem pensado, era melhor bacharelar-me em direito; todos os seus conhecidos mandavam os filhos para o Recife. A advocacia e a magistratura eram bonitas carreiras, não contando que a câmara dos deputados e o senado estavam cheios de juristas. Todos os presidentes de província não eram outra coisa. Era muito mais certo, brilhante e lucrativo. Repetiu-me isto por dias. Eu rejeitei os presentes de Artaxerxes; combati as suas idéias, desdenhei a jurisprudência, e nisto era sincero; as matemáticas e a engenharia faziam-me seriamente crer que o estudo e a prática das leis eram ocupações ocas. Para mim a linha mais curta entre os dois pontos valia mais que qualquer axioma jurídico. Assim que não era preciso ter nenhuma paixão amorosa para me animar a recusar o Recife; é certo, porém, que a moça do Castelo deu algum calor à minha palavra. Já agora queria acabar um romance tão bem começado.

Sobretudo havia em mim, relativamente à moça do Castelo, uma aventura particular. Não queria morrer sem conhecê-la. O fato de haver deixado o Rio de Janeiro sem tê-la visto de perto, cara a cara, pareceu-me fantástico. Achei razão ao Fernandes. A distância tornava mais dura esta circunstância, e a minha alma começou a ser castigada pelo delírio. Delírio é termo excessivo e ambicioso, bem sei; maluquice diz a mesma coisa, é mais familiar e dá a esta confissão uma nota de chufa que não destoa muito do meu estado. Mas é preciso alguma nobreza de estilo em um namorado daqueles tempos, e namorado poeta, e poeta cativo de uma sombra. Meu pai, depois de teimar algum tempo no Recife, abriu mão da idéia e consentiu em que eu continuasse as matemáticas. Como me mostrasse ansioso por tornar à Corte, desconfiou que andassem comigo alguns amores espúrios, e falou de corrupção carioca.

- A Corte sempre foi um poço de perdição; perdi lá um tio...

O que lhe confirmou esta suspeita foi o fato de haver ficado por minha conta o sótão da rua da Misericórdia. Custou-lhe muito aceitar este arranjo, e quis escrever ao correspondente; não escreveu, mas agora pareceu-lhe que o sótão ficara em poder de alguma moça minha, e como não era de biocos, disse-me o que pensava e ordenou-me que lhe confessasse tudo.

- Antes quero que me fales verdade, qualquer que seja. Sei que és homem e posso fechar os olhos, contanto que te não percas... Vamos, o que é.

- Não é nada, meu pai.

- Mau! fala verdade.

- Está falada. Meu pai escreva ao Sr. Duarte, e ele dirá se o sótão não está fechado à minha espera. Não há muitos sótãos vagos no Rio de Janeiro; quero dizer em lugar que sirva, porque não hei de ir para fora da cidade, e um estudante deve estar perto da Escola. E aquele é tão bom! continuei com o pensamento na minha Pia. Não pode imaginar que sótão, a posição, o tamanho, a construção; no telhado há um vaso com miosótis, que dei à gente de baixo, quando embarquei; hei de comprar outro.

- Comprar outro? Mas tu estudas para engenheiro ou para jardineiro?

- Meu pai, as flores alegram, e não há estudante sério que não tenha um ou dois vasos de flores. Os próprios lentes...

Hoje dói-me escrever isto; era já uma troça de estudante, tanto mais condenável quanto meu pai era bom e crédulo. Certamente, eu possuía o vaso e a doce flor azul, e era verdade que o tinha dado à gente da casa; mas vós sabeis que o resto era invenção.

- E depois és poeta, concluiu meu pai rindo.