Não tenho forças para descrever o barulho que se seguiu a esta cena ...



Não tenho forças para descrever o barulho que se seguiu a esta cena. O tumulto foi geral; só se acalmou indo os dois rapazes para um quarto onde D. Angélica os fechou a chave.

Com a noite veio o descanso. As visitas se foram embora, exceto D. Maria e a filha que resolveram ficar até quarta feira de Cinzas.

Pelas 9 horas da noite, D. Angélica foi soltar os prisioneiros. Achou-os jogando as cartas. Anunciou-se o chá e eles vieram para mesa, onde foram recebidos com um olhar furibundo da parte de Teresa, cujo namorado fora vitima das suas travessuras.

Quando se iam deitar o moleque que servia de intermediário entre Benjamim e Lucinda, foi aos dois rapazes e disse-lhes que precisava dizer uma coisa.

Levado ao quarto, disse que Batista tinha por costume pular de noite os quintais até o da casa de D. Angélica e conversar aí para a janela onde a sinhá moça Teresa ficava até muito tarde.

Esta comunicação inesperada tinha a seguinte explicação.

O moleque servia também de corretor entre Teresa e Batista; mas não tendo obtido deste as vantagens que esperava, e principalmente tendo-lhe ele recusado uma jaqueta nova que lhe pedira, entendeu que devia vingar-se assim.

Realmente, Batista podia dar-lhe uma ou duas jaquetas; mas como era muito econômico, entreteve o moleque na esperança e esse foi o seu mal.

Carlos ficou espantado com a notícia.

- Será verdade? perguntou ele a Benjamim.

- É nhonhô, insistiu o moleque, ele quer casar com sinhá moça Teresa, mas é um sovina...

- Virá ele hoje?

- Parece que vem.

Idéia infernal surdiu no espírito de Carlos. Era esperar o Romeu dos quintais e pregar-lhe nova peça.

- Um banho! disse o moleque quando Carlos consultava o irmão.

- Sim, um banho! disse Benjamim.

- Não, disse Carlos, coisa melhor; pensemos nisso. Enquanto os dois estavam em conciliábulo, as raparigas foram deitar-se.

Dormiam no mesmo quarto Lucinda e Teresa.

- Estou muito zangada com o Benjamim, disse Lucinda; não gostei que fizesse aquilo no teu... noivo.

- Cala a boca! não fales alto! Não foi ele só, foi o Carlos, que é sempre o autor destas idéias.

- Amanhã hei de passar uma sarabanda nos dois.

- Não digas nada, é melhor.

- Por que?

- Porque...

- Vais casar, bem sei.

Teresa sorriu.

- Depende de mim, disse ela.

- Titia já te perguntou alguma coisa?

- Nada.

- Mas há de falar...

- Amanhã, talvez.

- Sim, amanhã...

- Que é isto? Isto o que?

- Não ouviste um grito?

- Não; é uma coruja; estás medrosa.

- Pareceu-me.

As duas sentaram-se na cama.

- Que é que tu hás de dizer quando titia te perguntar se queres casar com o Batistinha?

- Velhaca! disse Teresa sorrindo.

- Por que, meu Deus?

- Quero saber também o que hás de dizer quando...

- Quando o que?

- Quando tua mãe te perguntar se queres casar com Benjamim...

- Ora, qual!... Mas vamos lá, dize...

- Eu responderei que é de meu gosto.

- Só isso?

- Pois então?

- Mas isso só não é bonito; é preciso dizer: Com toda a minha alma!

- Deixemos disso; é romântico demais.

Desta vez ouviu-se um sussurro no quintal. As duas chegaram à janela mas não viram ninguém.

- Não é nada, disse Lucinda.

Entraram outra vez e continuaram a conversar. No fim de dez minutos ouviu-se um assobio.

Teresa estremeceu.

- É ele!

Lucinda começou a despir-se.

- Pois então, disse ela, vai conversar enquanto eu me deito.

Teresa chegou à janela e agitou um lenço branco; Batista que já vinha pulando o último quintal, saltou à terra, aproximou-se do poço e começou a conversar debaixo com a namorada.

- Por que veio hoje? perguntou Teresa.

- Acha que fiz mal? disse Batista.

- Deve estar cansado.

- De que?

Teresa quis aludir ao banho mas receou envergonhar o rapaz. Por isso, sem responder à pergunta continuou:

- Mamãe ainda me não falou.

- Quando falará?

- Talvez amanhã.

- Que pretende dizer?

- Ora! que sim! diga-me outra vez; está certo de que foi bem recebido por ela?

- Perfeitamente; vi que ela compreendeu o meu amor; e como não, se é essa alma digna, essa alma celeste, todo cheia dos perfumes do paraíso?

Esta rajada lírica produziu um riso sufocado, que Batista atribuiu a Teresa, e esta a Lucinda. Mas Lucinda já dormia nessa ocasião.

- Riu-se de mim? perguntou Batista.

- Que pergunta!

- Parece...

- Ah! não insulte aquela que vai ser sua esposa.

- Insultá-la? jamais... Não; eu daria o meu sangue para vingar aquele que a insultasse... Mas diga-me, Teresa, você está contente casando comigo?

- Oh! muito feliz!

- Eu também! Havemos de ter uma bela vida!

- Eu espero.

- Contanto que nos não visitem indiscretos, ah! principalmente seus irmãos. Que par de pelintras!

- Deixe-os.

- Oh! se os deixo! São dois pelintras sem iguais. Não compreendem que a dignidade da vida humana é respeitar os outros, porque o homem é feito à imagem de Deus, e quem insulta um homem e o desconceitua, ofende a Deus. Não acha. D. Teresa?

- Parece que sim; disse a moça já um pouco aborrecida com o ar tétrico que o namorado ia dando à conversa.

- Mas eu perdôo a esses rapazes; só o que desejo é que me não visitem...

- Será o que você quiser...

- Teresa, você me ama?

- Muito.

- Para sempre?

- Para sempre. E você?

- Oh! eu! pergunta ao mar se ama a praia; ao zéfiro se ama a flor; à abelha se ama...

Não acabou a frase. Um esguicho anônimo lhe inundou a cara. Batista deu um pulo.

- Que é? perguntou a moça.

- Não sei... respondeu ele suspeitando estar descoberto.

- Mas que foi?

Batista não respondeu; imaginou logo que estava espiado e achou conveniente não dizer palavra e safar-se. Infelizmente, a noite estava escura e podia ele esbarrar-se com algum dos rapazes.

- Meu Deus! exclamou a moça. Que é?

- Nada...

- Alguma coisa há de ser.

- Descanse. Foi um espirro. Como ia dizendo, este momento aqueles seus manos são moços alegres mas dignos... Que galante idéia tiveram de me meter no banho!

- Isso é irônico, disse Teresa.

- Qual! é sincero! eu só me zango no momento; mas depois, reconheço logo que não há intenção de caçoar comigo...

Desta vez recebeu um esguicho por trás.

- Aí! disse ele.

- Mas que tem você? perguntou a namorada aflita...

- Nada! é um calo. São excelentes aqueles moços...

Outro esguicho nas pernas.

- São excelentes; continuou Batista tremendo de frio e de medo. Eu, se os encontrasse agora, abraçava-os.

Desta vez foram dois grandes esguichos. Batista teve idéia de pedir perdão; mas por um resto de pudor, não quis fazer figura triste diante da namorada.

Esta cada vez compreendia menos o rapaz. Os esguichos continuaram; ele falava entrecortando as frases; ela chegou a suspeitar que ele estivesse doido.

- Há de perdoar-me, disse ele, está fazendo um frio; vou-me embora.

- Já?

- Já.

- Adeus.

- Adeus!

- Até amanhã.

Teresa fechou a janela; Batista olhou à roda de si, não viu ninguém e procurou aproximar-se do muro para saltar.

Nesse momento caiu-lhe sobre as costas uma caldeirada dágua.

- Ai! ai! gritou ele.

E saltou o muro.

Mas antes que pudesse segurar-se bem, sentiu as pernas presas por quatro braços vigorosos. Caiu arranhando as mãos no muro.

- Que me quereis? disse ele tremendo.

Abriu-se a janela e apareceu Teresa.

O rapaz foi arrastado berrando para uma grande gamela, já cheia dágua. A moça entrou dando um grito. Acordou Lucinda e ambas foram acordar o resto da família.

- Hão de ser os endiabrados! Que pecado cometi eu? exclamou D. Angélica saltando fora da cama.

Dentro de pouco tempo estavam todos a pé, com velas acesas na mão, e dirigiram-se para o fundo, abrindo as janelas que davam para o quintal.

D. Angélica, desceu munida de um vergalho, e apareceu no quintal onde se passava a tragicomédia.

Batista esperneava dentro da gamela. Os dois irmãos o prendiam enquanto o moleque lhe despejava baldes dágua.

- Que é isto? perguntou D. Angélica.

E avançou brandindo o vergalho.

O perigo era iminente.

Os dois rapazes agarraram em Batista.

Carlos sentiu uma vergalhada nas costas; outra vergalhada foi diretamente a Benjamim. Que fazer? Os dois pegam do corpo de Batista e fizeram dele escudo, de maneira que as vergalhadas que D. Angélica, cega de furor, cuidava dar nos filhos, quem as apanhava era o futuro genro.

Teresa desceu abaixo; e suspendeu o braço da mãe, quando já Batista sentira todo o peso do braço da viúva Sanches.

Cessou a pancadaria; Batista foi levado para cima, e D. Angélica perguntou como é que os dois rapazes tinham podido pilhar Batista no quintal para maltrata-lo assim.

Aqui estava o nó da situação.

Batista, não querendo confessar que fora conversar com a futura noiva, e temendo as revelações dos rapazes, disse que fora lá para tratar com eles uma caçoada, e que aquilo era uma brincadeira.

Ao mesmo tempo dirigiu um olhar suplicante aos moços, que confirmaram a história, escapando assim a uma infalível correção.

Nessa noite todos dormiram mal.

Quando no dia seguinte, Tibúrcio soube do fato, sorriu dizendo que também o Batista merecia a presiganga.

Acabou o entrudo, felizmente para o Batista, e a quaresma felizmente para ele e a noiva, que se casaram e dão-se muito bem.

Batista vendeu o armarinho, e joga o gamão numa botica todas as tardes.