- Mas, meu querido, procuras apenas pretexto para dizer coisas infantilmente interessantes. Olha que antes de ti outros estetas falaram... Odiar as rosas!



- Mas, meu querido, procuras apenas pretexto para dizer coisas infantilmente interessantes. Olha que antes de ti outros estetas falaram... Odiar as rosas!

- Sim! odiá-las. Há flores carnudas, as rosas rosas, as rubro-negro como sangue coagulado, que a gente aspira, absorve o odor, cheira, cheira, e depois estraçalha com ódio porque prometem mais do que dão, porque deixam em meio o gozo, não nos completam o prazer anunciado pelo cheiro. Ah! essa aflição que dá aos sentidos o cheiro de algumas flores, as violetas, cujas emanações são como sons de violino em noites de luar, as tuberosas. crispantes de cio, as rosas chá que cheiram como carnes morenas, o resedá, a flor do resedá que o Fezensac cantou idiotamente num trocadilho e que entretanto guardam um frio e exasperante odor de gérmen fecundante, cheiro de marfim raspado... E, para notares a correspondência de cheiros idênticos nas coisas mais diversas, a flor que cheira a marfim, é também, cheiro resumo do cheiro inicial da vida, irmão odor do odor da semente criadora, estranhamente perdido entre as ervas... Oscar caíra num abatimento. Eu começava a temer o delírio.

- Então, se não amas os perfumes que te fazem mal, se odeias as flores que te exasperam, em que consiste o desproporcional domínio do olfato sobre os teus sentidos? É decerto um estado de anemia, uma grande fraqueza que te adoece e te faz sensível aos odores. Não amas os cheiros, temes todos os cheiros desde que eles se especializam, se individualizam.

- Ao contrário, fez, de novo animado, ao contrário. Tenho entre mim e a vida comum um como véu de talagarça espessa. E tudo quanto na vida se faz, eu sinto pelo cheiro, pelos cheiros, como um "seter" humano, amarrado à corrente da conveniência. É a existência de miragem olfativa, uma existência em que os cheiros visionam ambientes, descrevem as almas dos tipos que me rodeiam, dão-me sensações de cor, porque há odores de todas as cores; de sons, de músicas, porque cada cheiro é como um som diverso e o cheiro da baunilha é bem uma nota abemolada diversa do cheiro do cravo vermelho, esse sustenido de clarim; de gosto, porque os cheiros têm gosto; de excitação, porque todos os sentidos calcados por tamanha acuidade vibram a arcada furiosa de um desejo incompreensível, perpétuo, demoníaco, no meu pobre corpo. Oh! não estejas a olhar para mim assim irônico. Há uma íntima correlação entre as sensações do homem normal, que o faz amar a harmonia das coisas e o faz pensar na Beleza esplendente. Quando ele ama e sente assim, na floração da Arte, que é o arrimo da vida, minhando o seu pensamento sutil e vaga essa misteriosa afinidade entrelaça os sentidos, para que o homem sinta numa curva de anca a música das linhas, na carne de uma espádua o perfume da rosa, no entreabrir de um lábio o sabor dos frutos, na criatura que se desnuda o bruto. Desejo cego, caos das sensações... Quando é como eu, porém vitima de um só sentido, morbidamente absorve os outros e leva louco, no delírio perpétuo, a tentar reaver a harmonia.

- Daí...

- Daí, fez Oscar afastando nervosamente o cock-tail em meio, daí para a minha sensibilidade compreender que a natureza é inconsciente, que todos esses perfumes ela os espalhou brutalmente, desvairadamente, e que só um instante a razão lhe voltou, quando fazia a carne, quando criava a criatura, onde todos os cheiros da terra se encontram em suaves nuanças. O que eu amo é olor da carne, sempre uma orquestração, uma sinfonia de recordações de outros cheiros, o cheiro das bocas, o cheiro dos cabelos, o cheiro das nucas o estonteante cheiro das axilas... Há cabelos, sabes? que relembram o aconchego arminoso dos ninhos dos pássaros, cabelos em que a gente se perde como num imenso oceano de olências reparadoras, cabelos musicais que fazem pensar em manacás e em magnólias, cabelos que são o tecido de todos os cheiros reconfortantes. Há carnes doiradas, carnes feitas de leite e de sangue de cerejas que ao aspirá-las pensa um pobre no descanso dos bosques, em ragais, em fraudas rústicas, em grandes abraços pagãos sobre as liras. E as bocas? Já reparaste nas bocas? Há bocas quentes e frias, bocas sem cheiro algum, e bocas que quando falam junto a ti têm um cheiro íntimo de rosa murcha, quando te beijam parecem feitas de pétalas de rosas, e quando as sugas transfundem a alma como uma essência especial que parece o mel feito de todos os perfumes dos campos. As criaturas são as ånforas da harmonia dos cheiros. Cada carne tem o seu corpo ódico que é o cheiro, cada ser faz-me sentir a alma pela veste incorpórea do cheiro, desse cheiro que cada um tem próprio e jamais igual ao do outro, do cheiro que se procura para aquietar e amar...