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Relatados e discutidos os presentes autos de habeas corpus impetrado pelo Dr. Astolpho de Rezende a favor do Senador Nilo Peçanha, para que possa este, livre de todo o constrangimento, penetrar a 31 do mês corrente, no palácio presidencial do Estado do Rio de Janeiro, depois de empossado como presidente do mesmo Estado, e aí exercer as funções do referido cargo, por ter sido para ele eleito e proclamado pela Assembléia Legislativa, afim de servir no quatriênio que vai começar naquela data e finda no mesmo dia e mês de 1918, e considerando:
que, nos termos da Constituição Federal, "dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder" (artigo 72, parágrafo 22);
que a circunstância de não se achar o paciente ameaçado de prisão ou de ser obstado de locomover-se livremente, mas de se lhe vedar a entrada no edifício destinado à residência do presidente do Estado para exercer as funções desse cargo, não pode ser alegada sob fundamento de impropriedade do recurso intentado, porque as expressões do texto constitucional, mais amplas que as empregadas na lei ordinária para definir a garantia da liberdade individual, compreendem quaisquer coações, e não somente a violência do encarceramento ou do só estorvo à faculdade de ir e vir.
Nenhum outro meio existe em nosso direito processual capaz de amparar eficazmente o exercício livre dos direitos, a liberdade de ação, de fazer tudo o que a lei não proíbe, de proteger o indivíduo para não ser ele obrigado a fazer o que a lei lhe não impõe, uma grande porção de atos, enfim, de natureza pública ou privada, e cuja execução pode ser embaraçada não somente privando-se alguém de locomover-se.
Nenhuma ação cível há para alcançar-se esse fim, nenhuma ação criminal, também; esta própria para apurar a responsabilidade penal de quem praticou ou autorizou o constrangimento, a outra para firmar a obrigação às indenizações conseqüentes à ilegalidade ou abuso de poder: uma e outra provindo sempre da concessão do habeas corpus.
Ou este não se limita a impedir a prisão injusta e a assegurar a livre locomoção, ou a isso se restringe, e, neste caso, na falta de processo judicial idôneo para amparar outras manifestações da liberdade individual, não haveria como evitar coações contra esta, visando-a, principalmente, no exercício de direitos, de atos, para cuja realização nem só basta não estar o indivíduo em detenção ou poder locomover-se à vontade, como sucede com os da profissão, do emprego, de funções públicas, os decorrentes da qualidade de cidadão e outros muitos, cujo desempenho se caracterize por uma atividade moral, puramente abstrata, sem necessidade de ir e vir.
Irrisório seria pretender-se suficientemente garantidas tais manifestações da liberdade individual com a só proibição de não ser alguém preso injustamente ou de se lhe não tolherem os movimentos corpóreos, ou deferindo-se com aquela amplitude o habeas corpus, pensar-se que assim se protege a liberdade física e nada mais.
Se não difere, por outro lado, em sua natureza e em seus efeitos, o habeas corpus concedido a quaisquer indivíduos, nacionais ou estrangeiros, do que se outorga ao funcionário, por exemplo, para penetrar livremente na sua repartição e desempenhar o seu emprego, aos magistrados ou aos mandatários, do município, do Estado e da União, para também francamente penetrarem nos edifícios próprios e, ocupando suas sedes, praticarem a sua função ou mandato, força é reconhecer que aos primeiros, a quaisquer indivíduos, nacionais ou estrangeiros, de tal forma protegidos, sem os títulos, embora, do emprego, da função ou do mandato, não se deveria proibir o ingresso nos recintos, o acesso aos lugares destinados aos que legalmente podem ocupá-los para o exercício das respectivas atribuições, e logicamente se chegaria a concluir que, armados do habeas corpus, poderiam entrar em funções para as quais não estivessem habilitados.
Se se distingue, porém, nesses casos, limitando-se os efeitos do habeas corpus na primeira hipótese e ampliando-se nas demais figuradas, naquela para segurança da liberdade física, e nas outras para o exercício, ainda, das funções do emprego ou do mandato, visto é que o habeas corpus não deve ser conceituado com as restrições da antiga legislação, outra concepção dele resulta em face dos dizeres do citado parágrafo 22, não conserva mais o seu primitivo aspecto, como o revela uma farta jurisprudência nesse sentido, não preocupado nela o Tribunal com a sobrevivência daquela locução latina em nossas leis, vocábulos de uma língua morta guardando a essência de um direito novo, mas com o espírito deste a dominar os fenômenos de ordem jurídica, a evoluir com as necessidades do meio social e político. Como contestar ao Supremo Tribunal essa faculdade de interpretar soberanamente as regras constitucionais, como pretender-se subordiná-lo, de preferência, aos dispositivos das leis ordinárias?
"The courts take their power from the constitution, not from the legislature. They look only to the organic law for the source of their autority. They jealously guard against any invasion by the legislature of their constitutional authority." (BAILEY A. Treatise on the law of "habeas corpus" and special remedies. - 1913 - vol. I, parágrafo III. Legislative control).
Se essa é a feição do judiciário federal, nenhum outro poder poderá privar os indivíduos dos amplos benefícios do habeas corpus.
"The independent power of the courts in respect to the writ of "habeas corpus", was declared also by the Supreme Court of the United States, vohere is said "Neither the president nor Congress nor the Judiciary can disturb any of the safe guards of civil liberty incorporated into the constitution, except so far as the rights is given to suspend in certain cases the privilege of the writh of "habeas corpus". (Obr. Cit).
Se a interpretação aqui invocada é a que comporta o preceito constitucional, conforme julgados deste Tribunal, ocioso seria opor-se-lhe que aquele texto não abrange mais que a defesa da liberdade física, pretendendo-se, com esse intuito, sujeitar a Constituição e o seu órgão por excelência aos atos legislativos que, na hierarquia das leis, como observa BRYCE, ocupam lugar secundário, e não obstante ser esta instância superior, segundo DÍCEY, referindo-se à Corte Suprema Americana, "not only guardian but the master of the constitution".
Se a lei vive pelo sentido que lha dão os magistrados nos casos que decidem, se tal tem sido o dado por eles ao predito parágrafo 22, essa é a interpretação que há de prevalecer.
O Tribunal julgando sempre pela mesma forma, firmará, além disso, com essa igualdade de conduta e orientação da Justiça a tranqüilidade dos jurisdicionados.
A ordem constitucional repousa na ação livre e harmônica dos poderes e da nítida esfera de cada um deles resulta que as leis só valem pela inteligência que lhes dá o judiciário, como as entende ele nos pleitos que julga.
"The distinction between the legislative and the judicial powers as we have seen, is fundamental. The former is exerced to make or amend laws for future guidance, and the latter is exercised to determine rights under existing laws to interpret the laws in force and apply them to particular facts and circunstances. The executive power is employed to enforce the laws as axpound by the judiciary." (The Supreme Court of the United States by E. COUNTRYMAN - 1913 - ch. II, pag. 75).
Pouco importa que em alguns países, por institutos que não possuímos no mecanismo das nossas leis, se possam assegurar as mesmas garantias que só por via de habeas corpus entre nós é possível como recurso mais adequado ao amparo da liberdade individual em todas as suas modalidades, ou que, em outros, a inércia dos tribunais a respeito tenha explicação numa disciplina social e política mais perfeita que a nossa, que não atingimos por estarmos por enquanto, talvez, em um período de formação do caráter nacional para a percepção do regimen em que vivemos.
Pouco importa, outrossim, que com o restabelecimento da liberdade individual, coarctada em um Estado da União aos mandatários do legislativo ou do executivo se tenha resolvido algum problema político no mesmo Estado se não este último, mas aquele, puramente judicial, foi o objetivo único da decisão do Tribunal.
Questões políticas envolvidas na causa em que se debatem direitos sujeitos à apreciação da justiça, não podem excluir o julgamento desta, e, neste ponto de vista, o Supremo Tribunal não estendeu ainda o seu poder além de certos limites que, no entanto, a Corte Suprema Americana, que nos serviu de modelo, há muitíssimas vezes ultrapassado, sem que jamais se lhe tenha negado esse poder, ou contestado o valor de seus julgados, como testemunham os seguintes tópicos de A. Nerincx:
"Voilá bien des questions de politique coloniale ou de droit international que devront être resolus quelques unes l'on été déjá par les Etats-Unis dans les limites de leur Constitution. Et la misson délicate de la Cour Suprême sera toujours de tracer trés précisement ces limites á propos de chaque contestation. On le voit par ces quelques exemples, les problêmes que se présentent, á la barre de la Cour Suprême ne sont pas toujours susceptibles d'une solution simplement juridique. Questions de droit pur en apparence, beaucoup de fois deviennent d'une delicatesse extrême dés que l'on considére les conséquences politiques des divrses solutions qu'on pourrait leur donner. Et il ne suffit pas aux magistrats de la Cour Suprême de posseder les qualités qui font le juge: ils doivent y ajouter cette connaissance, on dirait volontiers, cet instinct des necessités pratiques du gouvernement qui est le propre des hommus d'Etat" (Ch. IV. La Jurisprudence de la Cour Suprême - 1909).
O que cumpre neste processo é ter em vista a legitimidade do título do paciente e bem assim verificar se é concludente a prova da ameaça de constrangimento.
Para proteger o livre exercício ou a prática profissional, para as quais a lei exige títulos, requisitos ou determinados predicados, indispensável é a exibição, desde logo, do título hábil ou demonstrar-se a capacidade legal, em virtude da qual o indivíduo ou cidadão se julga com o direito de não ser tolhido nos atos funcionais ou da profissão.
A documentação dessa prova deve ser imediata, livre de dúvidas sérias, líqüida para o Tribunal, até por que este recurso não suporta diligências probatórias. Julgando procedente o dito recurso em face de semelhante atestação, impertinente é dizer-se que nele resolve o Tribunal a controvérsia que não lhe cabe julgar, pois que a esse respeito não faz ele mais que fundar-se no que está suficientemente comprovado.
Encontra-se aqui o Tribunal em uma situação muito mais clara e nítida do que a referida neste tópico de Baily, quanto ao exame do título de eleição ao Congresso: "In a proper case the court may by mandamus require the board of state canvassers to determine in accordance with law, wich one of the candidates at an election for member of Congress, is entitled to the certificate of election".
Muito mais restrita, mesmo, é a ação do Tribunal do que neste outro caso, colhido no mencionado autor:
"The proceeding, so to speak, may be double in its purpose; to determine and vindicate public rights, and to enforce or protect the civil rights of individuals; to oust one who has usurped an office to give to the one of lawful right its possession".
Não resolve o Tribunal se o paciente é ou não o presidente do Estado do Rio de Janeiro, porque esta sua qualidade está sobejamente atestada, de modo mesmo a não poder-se admitir contestação a respeito.
A ilegalidade da coação constitui o terceiro elemento sujeito a exame no recurso; do conjunto destas três condições emerge o direito ao habeas corpus.
Na hipótese presente, é completa a prova dos três requisitos, o primeiro dos quais constante de documento em devida forma, que prova que o paciente foi proclamado, como presidente eleito, pelo poder competente, a Assembléia Legislativa estadual, e, a par dele, a justificação no juízo federal com as formalidades essenciais e o respectivo julgamento consagrando a sinceridade dos depoimentos reunidos naquele processo, resultando dessa situação, em face da lei, o abuso de poder com que se pretende impedir ao paciente o acesso às funções do cargo de que está investido.
Não colhem, absolutamente, as dúvidas opostas ao título do paciente, de modo algum enfraquecem elas a validade do ato da proclamação da assembléia, ou fazem suspeitar de sua legalidade.
Basta para repeli-las ter-se em vista a Constituição estadual e o que decidiram os julgados anteriores deste Tribunal, fundados na mesma Constituição e no Regimento do corpo legislativo que proclamou o presidente.
Vale a pena compendiar tais dúvidas, expô-las, para evidenciar a completa inanidade das mesmas.
Assentam elas em que o paciente foi proclamado pela minoria da assembléia, em sessão extraordinária, sob a direção de uma mesa, cujo mandato necessitaria ser prorrogado, e em edifício não destinado ao legislativo.
O que se refere à constituição da mesa e ao local em que se reuniu a assembléia, é matéria resolvida, julgada pelos dois acórdãos citados no processo; não há mais o que decidir sobre tal assunto.
Quanto a haver a dita assembléia funcionado em minoria, é de advertir: primeiro, que, como mostram os autos, antes da proclamação compôs-se a assembléia com a maioria absoluta de deputados, fazendo-se a comunicação disso ao presidente do Estado; segundo, que a retirada de alguns membros, deixando desfalcada aquela maioria, reduzindo a 18 o número de deputados que proclamaram o paciente, não é argumento que possa vingar contra a perfeição desse pronunciamento, atento o disposto no artigo 9º da Reforma Constitucional, alterando o art. 29 da Constituição do Estado, em virtude do qual bastam 16 deputados para que funcione regularmente a Assembléia, dada que seja em quatro sessões a falta de representantes em número de 23 prevalecendo a votação por dois terços dos presentes, e provado está que pela unanimidade de 18 votos, depois da ausência de cinco deputados naquele período para constituir a maioria ordinária, foi o paciente proclamado.
Não procede, finalmente, dizer-se que em sessão extraordinária, não devendo a assembléia tratar senão do assunto para que fora convocada, nela não podia ser feita a proclamação do presidente e vice-presidente do Estado. A disposição constitucional a que assim se alude teve certamente por fim impedir que os deputados convertessem em ordinária aquela sessão, legislando sobre coisas estranhas ao objeto especial para que fora convocada, como bem acentuou o acórdão de 6 de janeiro deste ano, no qual se demonstrou que por texto expresso do Regimento da assembléia, não podendo ser ele modificado senão pelos trâmites e discussões próprios à adoção de uma nova lei, contrário ao mesmo regimento e à Constituição do Estado, seria desviar-se a assembléia extraordinária da única matéria que motivara a reunião.
Não está neste caso, evidentemente, a apuração de poderes do presidente e vice-presidente do Estado, em frente do que estatui o art. 158 do mencionado Regimento.
Se a Assembléia é o único poder competente para apurar essa eleição, se nos termos do citado art. 158, três dias depois do prazo de 48 horas que é o da remessa das atas dos colégios eleitorais, compete ao presidente do legislativo dar para a ordem do dia subseqüente a eleição da comissão apuradora, manifesto é que tal apuração não podia ser excluída dos trabalhos da sessão extraordinária.
Incontestável, portanto, como é, a legitimidade da mesa que presidiu esses trabalhos; assentada do mesmo modo a legalidade da reunião da assembléia em determinado local, funcionando ela para aquele efeito com uma maioria superior à exigida e observando as formalidades regimentais a propósito, destituídas de qualquer fundamento patenteiam-se as dúvidas opostas ao título exibido.
Não são quaisquer impugnações que podem destruir a prova da capacidade legal regularmente feita no pedido de habeas corpus.
Não ocorre, mesmo, no presente caso a hipótese da dualidade do executivo estadual para o futuro quatriênio, desde que isto só poderia resultar da dualidade de assembléias, o que não sucede porque não há disputa do mandato legislativo entre dois grupos de cidadãos, julgando-se cada um destes empossado de poderes que contesta aos que formam o outro grupo.
Por não ocorrer essa dualidade deixou o Congresso de intervir no Estado, nem lhe era dado seguir outra norma de proceder, havendo já sentenças deste Tribunal garantindo o livre exercício dos deputados constituindo a mesa da assembléia e dos demais para se reunirem no local por ela designado, sentenças que não podem ser revistas ou anuladas, seja de que modo for, por qualquer dos outros poderes, firmado como ficou pelo Tribunal o terreno de sua jurisdição.
Bem diversa foi a situação do Ceará, em que a dualidade de assembléias tinha a aparência, sequer, de dois corpos legislativos, composto cada um deles de cidadãos que se julgavam, contra os de outro, únicos e legítimos representantes do povo cearense; coisa que ora não se dá, argumento com que se justificou a intervenção naquele Estado, intervenção que exercida anteriormente a qualquer sentença do Tribunal, levou este a abster-se de conhecer do pedido de habeas corpus em favor de uma das assembléias, único motivo dessa decisão, como consta do respectivo acórdão.
A dualidade de governos não se caracteriza, também, porque um cidadão, contra o legítimo titular, se considera chefe do executivo, baseado, embora, na investidura respectiva por um grupo de deputados em maioria.
Esta, como a minoria, só tem existência jurídica sob a direção de uma mesa regularmente organizada; fora disto, perdem uma e outra seu aspecto legal. Não há dualidade, pois, de governos e de assembléias a resolver neste recurso, e tão-somente o reconhecimento da posse de um título isento de vícios, expedido, como foi, pelo poder competente, cuja validade é incontestável em face de disposições expressas do Regimento da assembléia, da Constituição, e das leis do Estado.
Não se poderia, outrossim, entender que a cisão do legislativo estadual, devido ao agrupamento da dissidência fora da direção da mesa legal, afeta o mecanismo governamental do Estado, de modo a importar na ausência de um de seus elementos principais, a assembléia, determinando, conseqüentemente, providência do Congresso.
De forma alguma essa é a situação do Rio de Janeiro, e, portanto, nem oportuna, nem constitucional, seria a intervenção do legislativo da União naquele Estado, como o reconheceu o mesmo Congresso.
Dar-se-ia aquela anomalia, se, ao lado da dissidência desarmada, como está dos característicos de uma outra assembléia, os deputados constituídos sob a mesa legal, por sua vez, não reunissem o número preciso para deliberar, mas depreende-se do citado art. 9º da Reforma Constitucional que 16 deputados, e são eles 18, podem exercer constitucionalmente o poder legislativo local. Isto posto, o Supremo Tribunal Federal concede a ordem de habeas corpus preventivo ao Senador Nilo Peçanha para que este, nos termos da petição inicial, "possa, livre de qualquer constrangimento e assegurada a sua liberdade individual, penetrar no dia 31 do mês de dezembro corrente, no palácio da presidência do Estado do Rio de Janeiro e exercer suas funções de presidente do mesmo Estado até a expiração do prazo do mandato, proibido qualquer constrangimento por parte das autoridades e funcionários, estaduais ou federais, assegurada a execução da ordem pelo juiz federal da seção do Rio de Janeiro", cumprindo ao mesmo juiz requisitar da autoridade competente a força federal que julgar precisa para o cumprimento deste acórdão.
Supremo Tribunal Federal, 16 de dezembro de 1914. - H. do Espírito Santo, P. - Enéas Galvão, relator designado para o acórdão. - M. Murtinho. - Oliveira Ribeiro. - André Cavalcanti. - Pedro Lessa, vencido.
Reconhece o acórdão, em diversas passagens, que o habeas corpus é um meio de garantir a liberdade individual, e conclui com a declaração bem explícita de que concede a ordem impetrada, para que o paciente possa, "livre de qualquer constrangimento, e assegurada a sua liberdade individual", penetrar no dia 31 de dezembro corrente, no palácio da presidência do Estado do Rio de Janeiro, e exercer suas funções de presidente do mesmo Estado até a expiração do prazo do mandato, proibido qualquer constrangimento", etc.
Na parte relativa à garantia da liberdade individual, são esses mutatis mutandis, os termos de que se servem em nosso país todos os requerentes de habeas corpus, e todos os tribunais, singulares e coletivos, que concedem tais ordens.
Nunca houve no Brasil quem impetrasse um habeas corpus, sem alegar pelo menos, posto que sem fundamento, uma coação ou ameaça de coação, à liberdade individual.
Aí temos uma confissão implícita, imposta pela índole do instituto do habeas corpus, pelas noções rudimentares sobre a matéria, de que juridicamente é impossível obter um habeas corpus para garantir outro direito que não a liberdade individual, na acepção restrita da liberdade de locomoção.
Mas, se assim confessa o acórdão que o habeas corpus é um remédio adequado a resguardar a liberdade individual, por outro lado, quando se refere à liberdade individual, produz a mais perturbadora confusão, o mais estonteante baralhamento dos conhecimentos jurídicos, concernentes ao assunto.
Com efeito, através dos conceitos vagos, da falta de nitidez nas idéias e de precisão nos termos, vê-se que o acórdão chega a declarar possível, ou mesmo necessário, assegurar pelo habeas corpus "a atividade moral, puramente abstrata, sem necessidade de ir e vir". Já antes, em outro julgamento, se havia afirmado que habeas corpus é meio de defender a liberdade moral, o que me fez notar que "liberdade moral", no sentido geralmente usado, é expressão sinônima de livre arbítrio, e que os fenômenos estudados sobre essa designação são fatos físicos, que se passam no eu, e não precisam, portanto, nem podem, ser protegidos por nenhum processo judicial.
O direito só se ocupa das manifestações da vontade no mundo externo, e nunca do que se passa no espírito humano.
Concisamente enunciaram os romanos a impossibilidade e a inutilidade, de estender a sanção do direito aos fatos anímicos, quando escreveram num dos textos do Digesto "cogitationis poenam nemo patitur".
Que significa a expressão "atividade moral, puramente abstrata, sem necessidade de ir e vir"?
Por mais difícil que seja penetrar o sentido de frases como essa, o que parece certo, é que o intuito com que se redigiu a cláusula transcrita, foi afirmar que o habeas corpus não garante somente a liberdade de movimentos, mas também a atividade exclusivamente mental, que não se revela no mundo físico, ou se tome o qualificativo moral na acepção ampla, como termo oposto a físico, ou material, ou lhe dê a significação restrita de ético, relativo aos bons costumes.
No primeiro caso temos uma atividade puramente física, intelectual ou moral, que não se externa fora do eu.
No segundo, temos fenômenos consistentes em meditações morais, raciocínios éticos, orações, etc.
Em qualquer das duas hipóteses não se concebe absolutamente em que, como, quando, possa uma autoridade pública tolher a "atividade moral, puramente abstrata, sem necessidade de ir e vir".
Se o que porventura se receia, é que o poder público arranque da inércia física o indivíduo que estava entregue a quaisquer meditações, raciocínios ou devaneios ou de uma suave quietude o místico, o asceta, nesse caso o habeas corpus é aplicável, exatamente porque se trata de garantir a liberdade de movimentos.
Tanto é ofendido na liberdade de locomoção aquele que se quer mover em certas direções, e não o pode por coação de alguma autoridade, como aquele que quer permanecer num determinado ponto, "numa atividade moral, puramente abstrata, sem necessidade de ir e vir", e não logra em conseqüência da mesma coação.
Segundo o conceito de todos os juristas, de todos os tempos e de todos os lugares, o habeas corpus só aproveita, e somente pode aproveitar, a quem precisa ter os movimentos livres, ou a liberdade de locomoção.
Esta liberdade de locomoção é o que se denomina liberdade individual, na língua dos jurisconsultos que se ocupam do habeas corpus.
Desde os primórdios do instituto na Inglaterra até o livro de Countrymann, obra publicada o ano passado, e citada no acórdão, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, o que se denomina invariavelmente liberdade individual, é a liberdade de locomoção, a liberdade de movimentos, e o que se chama habeas corpus é um remédio judicial, que tem por função exclusiva garantir essa liberdade.
Cooley (A Treatise on the Constitutionnal Limitations, pág. 412), ocupando-se do habeas corpus, escreveu: "It still remain to mention one of the principal safeguards to personal liberty". E logo em seguida, apoiando-se em Blackstone, define a liberdade individual: "personal liberty consists in the power of locomotion, of chaning situation, or moving one's own inclination, may direct, without imprisonemen or restraint, unless by due course of law". Black (Handbook of American Constitutional Law, N. 199), doutrinou: "Personal liberty consists in the power of locomotion, of changing situation, of remaing one's person to whatever place one's inclination may direct", etc.
Hurd (A Treatise on the Right of personal liberty and on the writ of Habeas corpus, cap. Iº): "Personal liberty is the power of unsestrained locomotion". E à página 81: "o habeas corpus gradualmente foi substituído "all other common law writs devised to relieve in cases of illegal imprisonment". Wood (A Treatise of Legal Remedies of Mandamus, and Prohibition, Habeas corpus, Certiorary and Quo Warrento, pag. III): "A person imprisoned or restrained in its liberty, within the state, for any cause, or upon any pretense, is entitled, except one of the cases specified in the next section, to a writ of habeas corpus", C. Countryman no The Supreme Court of the United States, pág. III: "The principal reason for resorting to this remedy at common law was to precure the discharge of a person from illegal restrant or imprisonment. Under the Constitution and the judiciary acts the unlawful confinement constitutes the case or right of action, and the writ is the process or method of briging the case before the case".
A liberdade individual é um direito fundamental, condição indispensável para o exercício de um sem número de direitos.
Por isso, quando está preso, ou ameaçado de prisão, o indivíduo requer o habeas corpus, sem necessidade de especificar quais os direitos que pretende exercer; pois, a prisão impossibilita o exercício de quase todos os direitos. Mas, se lhe impedem a prática de certos atos somente, o exercício de algum direito apenas, e o indivíduo prova que indubitavelmente tem o direito que alega, por exemplo: é deputado, e não permitem que penetre no edifício de sua câmara; é funcionário público, e vedam-lhe o ingresso na respectiva repartição, é médico, advogado, comerciante, ou industrial, ou operário, e não consentem que se dirija ao lugar onde quer exercer uma atividade jurídica incontestável; pode um tribunal garantir-lhes por uma ordem de habeas corpus a liberdade de locomoção, a liberdade de movimento, a liberdade física necessária para o exercício do direito, declarando (note-se bem declarando; o que é bem diverso de decidir, julgar), ao mesmo tempo na concessão da ordem o direito incontestável líqüido, certo, que o paciente quer exercer, e lhe tolhem.
Seja embora a função essencial do Juiz julgar, dirimir contendas, é corrente em direito judiciário que, ao lado dessa função, tem o Juiz a de declarar os direitos não contestados, para "os garantir contra possíveis violações futuras" (J. Monteiro, Processo Civil e Criminal, parágrafo Iº).
Não se confunda absolutamente essa mera declaração de direitos com liberdade de locomoção.
Desde que seja duvidoso, que precise ser julgado em processo contencioso (por exemplo - o direito do indivíduo que alega que foi demitido injustamente, e que a sua demissão é nula, caso do art. 13 da lei n. 221, de 1894), ou, por mais forte razão, que só por outro tribunal, ou por outra autoridade, possa ser reconhecido o direito (por exemplo o caso de membros do poder legislativo, ou de presidentes e governadores, cuja verificação de poderes é contestada), já não é possível no processo de habeas corpus resolver a questão.
Por que?
Pela razão indiscutível de que o habeas corpus é um meio judicial de rito muito célere, sem forma nem figura de juízo, sem regras que garantam a exibição de alegações e provas; e conseqüentemente, ainda que o juízo tenha competência para decidir o pleito (se não a tem, tollitur quaestio) vedam os princípios do direito judiciário que arbitrariamente dirima a contenda.
Os meios judiciais são de direito público. A ninguém é lícito aplicar, para resolver uma espécie, um processo diferente do que a lei estatuiu, diminuindo ou eliminando as garantias legais.
Grave erro, segundo me parece, é supor que vivemos em Roma, sob a jurisdição dos pretores, que tinham a faculdade, por ninguém contestada, de auxiliar, suprir e corrigir o direito civil (ad juvandi, vel sopplendi, vel corrigendi juris civilis gratia).
Essa ilusão já devia estar desfeita há muito, sobretudo depois que escritores, como Cogliolo, mostraram que nos países modernos "il giudice non é piu' quelle que deve creare, ma applicare il diritto preesistente".
Outro engano é acreditar que a evolução do direito possa realizar-se contrariando disposições de direito público, do próprio direito constitucional, e sem nenhuma necessidade, por estar disposto na lei, e assentado pela doutrina, o que convém em determinada hipótese.
Neste caso dos autos, não sendo líqüido o direito do paciente, havendo - pelo contrário - dúvidas muito razoáveis sobre se foi, ou não, eleito presidente do Estado do Rio, e tratando-se de questão puramente política, a competência do Tribunal está excluída pela Constituição e pela doutrina.
Não se compreende uma evolução do direito por meio da violação de normas de direito público. Seria uma evolução a trancos e barrancos, dando por paus e por pedras, o que é a negação da idéia de evolução.
A evolução do direito tem suas leis, hoje estudadas e conhecidas (veja-se por exemplo, D'AGUANNE, La Genesi e l'Evolusione del Diritto Civile, número 38 e seguintes).
Atendendo-se disposição ampla da nossa Constituição sobre habeas corpus, pode-se chegar até a doutrina que tenho resumido. Ir além é impossível. Qualquer coação à liberdade individual, ainda quando não haja prisão, nem ameaça de prisão, autoriza o uso do habeas corpus.
Sempre que o indivíduo precise da liberdade física (segundo uma expressão já consagrada) para exercer qualquer direito, devemos garantir essa liberdade contra a violência já feita, ou apenas receada; mas, envolver no processo de habeas corpus uma questão acerca de um direito qualquer, que se pretende exercer, mas que é contestado com razões que devem ser apreciadas com as garantias processuais, ou um direito qualquer que só pode ser examinado e garantido por outro tribunal, ou por outra autoridade, ou por outra corporação, é ofender princípios inconcussos e correntes do direito pátrio.
Não está confiada a discrição, ao arbítrio dos juízes, a ampliação dos recursos judiciais ao ponto de poderem aplicá-los a hipóteses completamente diversas daquelas para que foram criados e consagrados pelas leis.
Parece à primeira vista, que o acórdão aceita estas idéias, que temos resumidamente lembrado; pois, quer que o paciente exiba uma prova "imediata, livre de dúvidas sérias, líqüida" do seu direito.
Mas, no decidir esta espécie, aceita como líqüido o que é muito duvidoso, não sabendo ninguém no Tribunal, nem podendo saber pelos autos, quem é o Presidente realmente eleito do Estado do Rio de Janeiro.
É verdade que o habeas corpus conclui pela concessão do habeas corpus, partindo da afirmação de que o paciente é o único candidato reconhecido pela única Assembléia Legislativa do Estado Rio de Janeiro.
Para assim decidir, apóia-se nos dois acórdãos anteriores, em que o Tribunal garantiu aos Drs. João Guimarães, Monerat e Almeida Rego, o direito de formarem a mesa da Assembléia Legislativa durante toda a sessão extraordinária, e o de funcionar a mesma mesa com a minoria que a tem acompanhado, em edifício diverso do em que antes se reunia a Assembléia Legislativa.
Sempre me pareceu evidente, diante dos arts. 12, 15, parágrafo 2º, 16 e 18 do regimento interno dessa Assembléia, que se deve proceder à eleição da mesa no começo de cada sessão, seja essa ordinária ou extraordinária, como sempre se fez.
Como declarei em meu voto vencido em parte, não podia em caso algum garantir por habeas corpus os lugares de presidente e de secretário de uma assembléia legislativa.
O Supremo Tribunal Federal não tem competência para resolver de qualquer modo questões relativas à presidência de uma assembléia legislativa, federal ou estadual. Se pudesse reconhecer e garantir a mesa de uma assembléia legislativa, decidiria ipso facto a mais política de todas as questões; pois, intervir na formação da mesa de uma assembléia legislativa é ter em suas mãos a organização do poder legislativo, que é um dos principais fatores da política, um dos mais fecundos geradores de atos políticos, assim como intervir no reconhecimento do poder executivo é concorrer para a gênese de outro poder, igualmente produtor de transformações políticas, do poder que dirige permanentemente a vida política do Estado.
Em caso nenhum poderia o Supremo Tribunal Federal determinar qual o presidente e quais os secretários que devem compor a mesa de uma assembléia legislativa de um Estado, durante uma sessão ordinária ou extraordinária.
Se, neste caso especial, lhe fosse facultado pronunciar-se acerca da espécie, a solução regimental seria o que sempre tem sido dada pela Assembléia Legislativa do Estado, nas muitas sessões extraordinárias já efetuadas.
Também votei contra o segundo habeas corpus, por me parecer que alegando a mesa do Dr. João Guimarães que não podia, com os deputados que a acompanhavam, celebrar suas sessões no edifício da Assembléia Legislativa, em conseqüência da ilegal e violenta oposição do governo do Estado ao ingresso dos pacientes, no edifício da Assembléia, o habeas corpus só devia ser concedido para o fim de poderem os pacientes entrar no referido edifício, e nunca para irem celebrar suas sessões em outro prédio.
Mas, concedendo, só para argumentar, que os dois referidos habeas corpus tenham sido dados muito legalmente, constituirão eles um obstáculo a que seja negado o atual, o impetrado em favor de um dos candidatos que se dizem eleitos regularmente para a presidência do Estado?
Em primeiro lugar, importa que os dois anteriores acórdãos não fazem coisa julgada, e muito menos coisa soberanamente julgada, conforme disse o relator em seu voto.
Coisa julgada, como é corrente em direito, só produzem "as sentenças definitivas, ou com força de definitivas, em matéria de jurisdição contenciosa" (J. Monteiro, obra citada, parágrafo 239).
Nos dois acórdãos anteriores não houve absolutamente discussão, nem decisão sobre a questão de saber se o paciente é, ou não, o legítimo presidente do Estado do Rio. Nem, ao serem eles proferidos, se havia procedido a verificação de poderes, que originou o presente pedido.
Demais, no habeas corpus nunca poderia dar-se a coisa julgada, que alguns têm querido ver nos dois acórdãos aludidos. Se nega o Juiz a ordem, pode o impetrante requerê-la de novo quantas vezes queira, como é rudimentar na matéria.
Se é a ordem concedida, garante-se a liberdade de locomoção do paciente, enquanto é a mesma a sua posição jurídica. Variando esta, sendo pronunciado, ou condenado, por exemplo, por juiz competente, ou sendo regularmente privado do direito que queria exercer, já nenhum efeito mais produz a ordem concedida ao paciente, o que é elementar.
Neste caso dos autos o que se poderia indagar é se há contradição entre os votos dados em favor dos dois primeiros habeas corpus e o que negasse o requerido nestes autos. Não há. Mesmo respeitados os dois primeiros acórdãos, a ordem atualmente impetrada não devia ser concedida, nem se pode julgar um corolário das duas primeiras.
Declarou o Tribunal que a única mesa legal, a única mesa que podia presidir a sessão extraordinária da Assembléia Legislativa do Estado, era a já mencionada. Mas, é evidente que, para se constituir a Assembléia Legislativa, era indispensável que, além da mesa, houvesse deputados em maioria. Absurdo evidente fôra supor que, por força do art. 9º da reforma constitucional de 18 de setembro de 1903, esteja a Assembléia legalmente constituída, desde que haja 16 deputados.
O que dispõe este art. 9º, é que, "quando em quatro sessões consecutivas não tiver lugar a votação, por falta de número, a ela se procederá na quinta com a presença de pelo menos 16 deputados". O artigo pressupõe, pois, a existência da maioria, sem a qual a Assembléia não existe, e que dessa maneira só comparecerão em cinco sessões consecutivas 16 deputados, permitindo que na quinta se dê a votação.
Ora, a não ser uma vez antes da instalação solene, nunca a fração da Assembléia, presidida pelo Dr. João Guimarães, representou a maioria. Como reconhece o acórdão, têm-se reunido sob essa presidência 18 deputados. Comparecendo todos os membros da facção do Dr. João Guimarães, não há maioria, fato público e notório.
Conseqüentemente, a despeito da concessão do habeas corpus à mesa do Dr. Guimarães, e a despeito de se permitir que esta mesa e seus amigos políticos funcionassem em edifício diferente do destinado às sessões da Assembléia Legislativa do Estado, não foi possível constituir regularmente o poder legislativo do Estado com a mesa e os deputados assim garantidos, por falta de um elemento necessário, indispensável, essencial, deputados em maioria.
Quando se procedeu à verificação de poderes do paciente, a fração da Assembléia Legislativa do Estado do Rio, presidida pelo Dr. João Guimarães, não se podia dizer a Assembléia Legislativa, regularmente reunida, porque era uma incontestável minoria.
Este é o fato inegável. E pretender transformar essa minoria em maioria, computando como membros ausentes da fração em minoria alguns membros da maioria, porque uma única vez, antes de bem acentuada a divergência, ou a luta entre as duas frações, compareceram à sessão da minoria, é um jogo ou um passe inadmissível.
Portanto, admitindo-se para argumentar, que o Supremo Tribunal Federal só pudesse, ou devesse, proferir o presente acórdão, respeitando os anteriores como decisões que produzem coisa soberanamente julgada, como afirmou o voto vencedor, não era possível, diante dos fatos verificados depois da concessão dos dois primeiros habeas corpus, conceder a ordem impetrada nestes autos.
Começa o acórdão por exigir que o paciente prove que o seu direito é líqüido, certo, indubitável, sem o que, reconhece e confessa, não pode ser concedida a ordem; e, entretanto, dá o presente habeas corpus a um paciente que se julga presidente regularmente reconhecido de um Estado, quando há outro presidente que também se julga regularmente reconhecido, caso manifesto de dualidade, e o paciente, para quem se impetra o presente habeas corpus, foi reconhecido por uma fração da Assembléia Legislativa, que é uma incontestável minoria dessa Assembléia, e portanto não pode funcionar regular e validamente.
Ao Supremo Tribunal Federal faltava competência para julgar a espécie por ser o caso evidentemente político.
E, quando competência lhe sobrasse para o caso, não poderia conceder a ordem, por ser mais que contestável o direito do paciente de exercer as funções para as quais impetrou o habeas corpus.
Em substância: o habeas corpus que nos garante a Constituição no art. 72, parágrafo 22, é o único habeas corpus que se conhece.
Tanto na linguagem comum como na linguagem especial do direito, o que se denomina habeas corpus é um meio judicial de se garantir a liberdade de locomoção.
Os termos amplos de que se serviu o legislador da Constituinte, autorizam-nos (e é esta a maior amplitude que, diante das nossa leis e da doutrina de todos os países que consagram o habeas corpus, se pode dar a este instituto) a conceder a ordem impetrada, não só nos casos de prisão e ameaça de prisão, como nos casos em que o paciente se queixa de qualquer coação ou constrangimento à liberdade individual que lhe impeça o exercício de um ou de alguns direitos determinados.
Nesta última hipótese, importa muito distinguir a ordem em que se garante a liberdade individual, função própria do habeas corpus, da mera declaração de direitos incontestáveis, certos, líqüidos, do paciente, o qual, para exercer tais direitos, precisa ter garantida a sua liberdade física, direito fundamental, direito-condição, para o exercício de inúmeros direitos, de ordem constitucional, administrativa, civil, comercial.
Verificando que o direito-escopo é líqüido, indisputável, deve o juiz conceder a ordem garantidora da liberdade física, declarando formalmente o direito incontestável. Declarar não é julgar.
E, como segundo as disposições legais e a doutrina do direito constitucional brasileiro o poder judiciário tem a faculdade e o dever de não aplicar leis, nem regulamentos, ou quaisquer atos do poder executivo, ofensivos da Constituição, a ordem será concedida, quando nenhum outro obstáculo se ofereça à concessão, e apenas se pretenda embaraçar o direito individual por meio de um ato inconstitucional.
Neste ponto, deve o magistrado proceder na decisão do habeas corpus, como na decisão de qualquer outro feito. Tal é a doutrina norte-americana, e tal a jurisprudência da Suprema Corte Federal dos Estados Unidos, com apoio na opinião de Marshall, como se vê em Thayer, Cases on Constitutional Law, vol 2º, páginas ns. 2379 e 2380.
Averiguando que o direito-escopo é questionável, incerto, ao juiz é vedado dirimir a questão relativa a esse direito no processo de habeas corpus, sem forma nem figura de juízo, sem as garantias judiciárias que oferece o processo contencioso.
Fora um procedimento inexplicavelmente arbitrário decidir, a propósito de um pedido de habeas corpus, questões que não competem ao juízo, ou que este só tem competência para processar e julgar contenciosamente, de acordo com certas normas jurídicas, garantidoras dos direitos dos interessados.
Perfilha o acórdão o conceito de um dos mais conhecidos vulgarizadores das instituições norte-americanas, para o qual os membros da Corte Suprema não devem ter somente os predicados de juiz; a esses requisitos devem aliar "o instinto das necessidades práticas, próprio dos estadistas".
Muito aceitável me parece o conceito do aludido divulgador na prática exigindo sempre dos juízes da nossa Corte Suprema a reunião de tão preciosas qualidades.
Juízes assim dotados de tão interessantes aptidões nunca deixarão de reconhecer que, se em todos os países e em todas as épocas, o estudo acurado e a escrupulosa aplicação das leis, constituem os deveres essenciais do magistrado, no Brasil, e muito particularmente nesta fase política, em que o desprezo pela lei parece ter tocado o extremo, aplacar a sede abrasadora de legalidade e de justiça deve ser o artigo capital do programa de um estadista, digno desse nome.
Só se conhece um meio para realizar tão patriótico desideratum aplicar rigorosamente as leis, iluminados pela doutrina, pelos princípios de direito.
É preciso cercear quanto possível o arbítrio, eliminando as opiniões individuais destituídas de qualquer fundamento, sem a mais fraca base científica, que podem levar a resultados como este de se impetrar um habeas corpus para resolver uma questão meramente política, o que é tão repugnante ao nosso direito, como, por exemplo, intentar uma ação de reivindicação para anular um casamento, ou uma ação possessoria para rescindir uma concordata; opiniões que vão ao excesso de usar de expressões técnicas conhecidíssimas, dando-lhes um sentido original, extravagante, completamente desconhecido, contrário a uma tradição ininterrupta, sem amparo nos princípios jurídicos, repelida por todos os que se têm ocupado competentemente do assunto, o que é um dos mais graves indícios de decadência de uma sociedade. No começo do seu esfacelamento, costumavam os velhos romanos sobreviventes a um período em que ainda havia um pouco de ordem e de grandeza, repetir esta frase desoladora: nos equidem vera resum vocabula amisimus. Na verdade, até esquecemos a significação das palavras. - G. Natal.
Conheci do pedido, porque, para julgá-lo, não precisava entrar no exame da questão propriamente política a de saber qual dos dois candidatos à presidência do Estado do Rio de Janeiro havia obtido efetivamente a maioria dos sufrágios eleitorais, matéria que a Constituição do Estado atribui exclusivamente à sua Assembléia Legislativa, sem recurso para outro qualquer poder estranho, federal ou estadual.
O que tinha a verificar previamente o Tribunal para conceder ou negar a ordem requerida era, se a Assembléia Legislativa do Estado, quando procedeu ao ato puramente político da apuração das eleições para presidente e proclamou eleito o impetrante, estava legalmente constituída, podendo assim deliberar validamente.
Como bem o acentuou o acórdão, não havia no Estado do Rio de Janeiro uma dualidade, de assembléias, isto é, duas turmas de deputados, cada qual composta de 45 membros, a disputarem entre si a legitimidade de suas eleições, mas uma só assembléia na posse legítima e incontestável de suas funções constitucionais, e que depois de se haver constituído com maioria absoluta para instalação de uma sessão extraordinária, ao instalar-se, cindiu-se em dois grupos - um em maioria sob a presidência ilegal do vice-presidente, outra em minoria, mas sob a direção da mesa legal. Esta questão de legalidade de funcionamento da Assembléia, além de perfeitamente compatível com as formas sumaríssimas do processo de habeas corpus, por depender apenas do exame de textos da Constituição do Estado e do Regimento da Assembléia, já havia sido resolvida por dois acórdãos do Tribunal, e, a meu ver, bem resolvida, porquanto, conferindo o regimento exclusivamente ao presidente da Assembléia a atribuição de interpretar as suas disposições, e ainda mais, vedando-lhe nos casos duvidosos, a consulta à mesma Assembléia, que só por um projeto de lei, com os trâmites dos projetos em geral, poderia alterar a interpretação, uma vez que, no uso dessa faculdade, o presidente deliberou que o mandato da mesa eleita em uma sessão ordinária prevaleceria para uma sessão extraordinária, e a assembléia não revogou pelos meios legais essa deliberação, deveria ela subsistir para todos os efeitos. Sendo assim, só sob a direção dessa mesa poderia validamente deliberar a Assembléia, e como a maioria de seus membros a isso se tivesse recusado, perdeu o caráter de órgão legal da Assembléia, que passou a ser unicamente representada pelo outro grupo, que se compunha de 18 deputados, quando o quorum estabelecido pelo art. 9º, da Reforma Constitucional, para o caso de impossibilidade de funcionamento por mais de quatro dias, é o de 16 deputados.
Não havendo, nessas condições, senão uma assembléia no Estado do Rio de Janeiro, não poderia haver dualidade de apurações de eleição e uma dualidade de presidentes.
Ora, tendo sido o impetrante o candidato proclamado eleito, pela Assembléia legalmente constituída, por funcionar sob a direção da mesa legal e com o quorum constitucional, líqüida era a situação jurídica, que invocava perante o Tribunal, para reclamar as garantias à liberdade de locomoção necessária ao exercício dos direitos decorrentes de tal situação, liberdade ameaçada, como demonstrou, de iminente constrangimento ilegal.
Por essas razões concedi a ordem impetrada, não obstante ser dos que não dão ao instituto do habeas corpus a amplitude que lhe dá o relator do acórdão, mas dos que, com o Sr. Ministro Pedro Lessa, que com tanta felicidade sintetizou a doutrina a respeito, o mantém dentro dos limites que lhe tem traçado a jurisprudência do Supremo Tribunal por uma já longa série de decisões. - J. L. Coelho e Campos, vencido.
Divergindo do venerando acórdão obedeço a princípios e conceitos, que sempre sustentei, e constam dos Anais do Congresso Nacional. O presente julgado, sem precedentes nos anais judiciários, só encontraria símile no caso do juiz do distrito de Luisiania, em1873, dando posse judicial, com auxílio de força, a um dos pretendentes do governo do Estado, seu correligionário.
Semelhante fato, porém, não teve êxito, e profligado no Senado americano, e pelos publicistas, não mais se produziu em parte alguma, que me conste, a não ser agora no Brasil, pelo seu mais elevado tribunal. Como o caso de Luisiania, com o risco da mesma ineficácia, a decisão da Suprema Corte do Brasil, tais os protestos levantados com fundamento na jurisprudência geral dos países federados e na própria jurisprudência do Supremo Tribunal.
Expor a questão é ver-se-lhe a inviabilidade. Pede o impetrante, e deferiu-lhe o Tribunal, seja o paciente, senador Nilo Peçanha, empossado como presidente eleito do Estado do Rio de Janeiro, por uma fração de assembléia, e assegurado o exercício do cargo por todo o período legal, requisitada a força federal em garantia dessa posse e exercício.
Por que?
Pelas informações prestadas e notoriedade do fato, é que à posse impetrada se oporia o atual presidente do Estado, no interesse de empossar, como tal, outro candidato, o Dr. Feliciano Sodré, que se entende também eleito e reconhecido por outra fração da assembléia.
Tanto vale dizer que sofre contestação o direito para o qual se pede o amparo do habeas corpus. De lado o conceito jurídico geral de que o habeas corpus somente garante a liberdade pessoal, física ou de locomoção, em face mesmo da nova doutrina, que não comungo, dos últimos julgados do Tribunal, amparando por habeas corpus todo o direito líqüido ou incontestável, tolhido ou ameaçado, claro parecia que não havendo o direito incontestável, não teria lugar a ordem impetrada.
Contam-se por dezenas as decisões não conhecendo de habeas corpus, por tal fundamento, em casos de dualidade de Conselhos Municipais, Assembléias, Governadores ou outros funcionários de legitimidade contestada.
Era natural a estranheza da interrupção dessa jurisprudência uniforme da maioria do Tribunal, e, neste crescendo da nova doutrina garantindo por habeas corpus os direitos mesmo em litígio, como ora o faz, sem forma nem figura de juízo!
Alega-se que esta decisão é corolário, decorre de dois acórdãos em que, por habeas corpus, o Supremo Tribunal, pelo primeiro, garantiu a permanência da Mesa da Assembléia durante a sessão extraordinária então convocada, e pelo segundo teve por legal a mudança de sede da Assembléia, para outro edifício, onde funcionou a mesa e a fração da minoria dos deputados.
Não falto ao acatamento, que devo ao Tribunal, se, fundamentando os meus votos vencidos, então como agora, tenho tais decisões por ilegais. Ilegal a continuação da mesa, sem nova eleição, à vista do art. 15, parágrafo 2º, do regimento, que manda eleger nova mesa em toda a sessão - ordinária ou extraordinária; preceito sempre assim entendido e praticado pela Assembléia do Estado, em suas sessões extraordinárias em treze anos, que houve na vigência do regimento.
Ilegal a mudança do edifício, porque a Constituição do Estado e o regimento da Assembléia só permitem essa mudança, quando requerida pela maioria, ou por dois terços dos deputados, ou decretada pelo presidente do Estado, conforme as circunstâncias previstas para estas hipóteses, nenhuma das quais ocorreu, sendo a mudança por arbítrio da mesa, e da minoria. Donde a seguinte anomalia - a fração da minoria, no novo edifício, reconhecida pelo Supremo Tribunal, como Assembléia -; a fração da maioria no antigo edifício, reconhecida como Assembléia pelos demais poderes do Estado, pelas municipalidades em geral, e pelos poderes federais, que com ela se relacionam, e especialmente pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, aprovando pareceres de suas comissões de que não havia que intervir no Estado do Rio de Janeiro, pelo funcionamento regular dos poderes públicos, um dos quais a Assembléia representada pela fração da maioria.
Atingiu-se o fim colimado: a fração da minoria reconheceu presidente eleito o paciente; a fração da maioria reconheceu eleito o seu competidor.
Se ilegais os fundamentos, não pode ser legal a decisão, e sua ilegalidade sobretudo avulta e prima em face da Constituição, como se passa a ver: Seja como for, um fato se destaca fora de toda a dúvida e é a dualidade perfeitamente caracterizada, de poderes no Estado, e por tal se terá, não somente um, mas dois governos no Estado.
É a questão a dirimir. A quem compete e como fazê-lo? A competência não se presume, só existe quando a lei declara.
Não é atribuição privativa de qualquer dos poderes da União, a dualidade de poderes nos Estados. Não a tem o Congresso (Constituição, art. 34, e parágrafos). Não a tem o Poder Executivo (art. 48 e parágrafos). Não a tem o Poder Judiciário (art. 60 e parágrafos). Não a tem, especialmente, o Supremo Tribunal (art. 59 e parágrafos).
Essa competência é, sim, conferida ao Governo Federal autorizado a intervir nos negócios peculiares dos Estados para manter a forma republicana (art. 6, número 2) a que a dualidade da causa.
A dualidade afeta a forma republicana, porque pressupõe a ilegitimidade, a falta de representação, e sem a representação não há a forma republicana. Governo Federal é o conjunto dos poderes, o que não quer dizer a sua concomitância; porque, somente agem os poderes políticos o Congresso e o Poder Executivo, segundo a oportunidade, sendo que o Poder Judiciário, sem parte na intervenção, conhece apenas dos fatos que incidam em sua função ordinária, se há delitos a punir, ou direitos individuais a garantir. Por isso diz COOLEY, o Poder Judiciário quase não tem função na intervenção. E TANEY adianta que as cortes se limitam a executar a lei, como a encontram.
E não tem função, porque a dualidade de poderes, a forma republicana, a intervenção são matéria política, exclusivamente política. Seria infindável e desnecessária a menção de publicistas e arestos de todos os países federados em confirmação deste asserto.
O Poder Judiciário não conhece, não dirime questões políticas, salvo exceções expressas em lei. Refere BRYCE o rigoroso escrúpulo com que Marshal, o homem proverbial dos americanos, se abstinha de penetrar na esfera do executivo ou da controvérsia política. HAMILTON, na convenção de seu país, desvanecia os receios da ditadura da Suprema Corte, afirmando serem tais receios infundados, por isso que a esse alto Tribunal não seria permitido o conhecimento de questões políticas, em que o despotismo e a tirania poderiam facilmente manifestar-se.
Igual justificativa fizera entre nós, o Governo Provisório, das prerrogativas especiais da magistratura federal, afirmando não haver perigo, porque o Poder Judiciário não teria que decidir questões políticas em que o perigo pudesse haver.
E Carlier dá força jurídica a essas afirmações dizendo com a Corte Suprema no caso de Bennet: "que os tribunais de justiça não foram instituídos, como guardas dos direitos do povo, senão como protetores dos direitos individuais, que é a sua missão assegurar".
Objeta-se, entretanto, que o caso em questão é jurídico, e não somente político, porque há um direito a garantir e um litígio a dirimir. Quid inde?
Nem todo o litígio é da alçada judiciária. Não o é o litígio sobre a eleição para deputado, senador, presidente, etc.
"Casos há, escreve COOLEY, em que os departamentos políticos somente podem deliberar, e não podem ser subordinados à apreciação dos tribunais há casos em que as questões são meramente políticas, e não podem, portanto, tornar-se objeto de uma demanda fundada em lei ou na equidade entre os litigantes. É disto exemplo quando se contende sobre a legitimidade da autoridade do Estado, quando o Congresso ou o presidente intervém para garantir a certo Estado a forma republicana do governo.
A decisão que os "departamentos políticos proferirem é final e conclusiva..." Ora, que a dualidade de poderes nos Estados é matéria fundamentalmente política afirmam quantos tratam esses assuntos, entre os quais o jurisconsulto Ruy Barbosa, em termos inequívocos, positivos, chegando a dizer, citando Hore, que:
"toda a gente sabe que subordinar atribuições desta ordem à instância revisora dos tribunais seria contra-senso e rematada confusão." (Act. Inconst. pág. 136). Não há na legislação e na jurisprudência casos de intervenção nos negócios peculiares dos Estados, pelo poder judiciário.
Não foi dirimida a dualidade em Rhode-Island, na Luisiania, etc., senão pelo poder legislativo e pelo executivo. No México é o Senado a quem compete. O poder judiciário em caso algum, em parte alguma, salvo o citado caso da Luisiania, que não valeu, e a decisão agora do Supremo Tribunal, a qual (porque não dizê-lo?) corre também o risco de não valer.
E como não?
Se a dualidade de governos se resolve pela intervenção, se desta o Congresso e o Poder Executivo é que conhecem; se por lei ou ato legal se verificar que não há presidente regularmente eleito no Estado do Rio de Janeiro, ou que o eleito foi, não o paciente, mas o seu competidor, não há como juridicamente duvidar dessa decisão possível do Congresso e do Poder Executivo.
E se constitucional essa resolução, a conseqüência não será outra senão a insubsistência do habeas corpus ora concedido no suposto da legitimidade do paciente como presidente eleito, legitimidade que os poderes competentes não reconheceram. Não seria novidade.
No juízo ordinário se concedido o habeas corpus, não obstante, prossegue o processo e o impetrante é pronunciado, fica a ordem sem efeito. Na ordem política, há já o precedente deste mesmo Tribunal, que havendo concedido uma ordem de habeas corpus a uma das assembléias do mesmo Estado do Rio de Janeiro, há cerca de quatro anos, tendo o Senado reconhecido legítima a outra assembléia, e assim se manifestado também a comissão respectiva da Câmara dos Deputados, e o Poder Executivo, encerrado o Congresso, reconhecendo por decreto a mesma assembléia, resolveu o Supremo Tribunal, arquivar o habeas corpus concedido, por já sem razão de ser e inexeqüível.
E se os poderes políticos conhecerem do caso em questão, se o Supremo Tribunal resolver agora, como resolveu então, o que será o acórdão?
Tellum imbelle sine ictus. Sem obrigatoriedade para aquele poderes.
Não desconheço esta tendência, de algum tempo, sugestiva, de preponderância na nossa organização política pela obrigatoriedade absoluta dos arestos em relação aos outros poderes, no pensar dos adeptos dessa doutrina.
Não há muito, em uma reunião de profissionais, ouvi um discurso de valor, atribuindo-se funções tais ao Supremo Tribunal, a cuja ação não escapavam as mais graves questões políticas.
A decisão presente se enquadra nestes moldes, se não é a sua repercussão. Erro grave se me afigura a nova doutrina, desde que independentes e harmônicos, autônomos e coordenados são os poderes públicos. Não há poderes subordinados, na esfera de suas atribuições.
Se o poder judiciário não aplica uma lei por inconstitucional, nem por isso a revoga; se anula o ato executivo, essa garantia do direito individual, nem sempre fica o ato revogado. Por igual se a decisão judiciária invade atribuições de outro poder, positiva, expressa, o poder invadido a tem por inaplicável, quanto ao excesso ou demasia.
A obrigatoriedade da decisão, portanto, nem sempre é absoluta. S. Miller, notável juiz da Corte Suprema Americana, o reconhece, quando diz: "Não é estritamente verdade que essas decisões sejam, em todos os casos obrigatórias para os ramos executivo e legislativo do governo".
É a doutrina constitucional. Se ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei, não se compreende que poderes independentes, autônomos se submetam a uma decisão manifestamente inconstitucional.
"É um erro, diz Bryce, supor que o poder judiciário é o único intérprete da Constituição; há um vasto campo em que essa competência se exerce também pelas outras autoridades do governo".
É a jurisprudência aceita, e segundo ela se pronunciaram Jefferson, Jackson, Lincoln, em momentos históricos.
A mesma inaplicabilidade das leis inconstitucionais tem cancelos, que o direito e a jurisprudência adotam; e que o Congresso Nacional poderá fixar (Constituição, art. 34, n. 33), como sejam: que a inaplicabilidade não importa revogação, só obriga no caso concreto e quando expresso e positivo o dispositivo constitucional ofendido.
Fora disto cessa para os demais poderes a obrigatoriedade da decisão, por força da sua autonomia deles.
A obrigatoriedade absoluta, quand même, suscitaria esses receios que Hamilton e o Governo Provisório procuraram dissipar, de uma ditadura vitalícia, a pior das ditaduras. A reação se faria sem prejuízo do prestígio do Supremo Tribunal e de suas altas funções em bem do país; no regimen adotado dos poderes limitados.
Membro do Supremo Tribunal, penso hoje, como dantes, e venho de expor. Por idéias e tradição, não posso subscrever neste particular, a doutrina a que obedece a maioria do Tribunal. Notou, há pouco tempo, um grande observador, que de quantos países percorreu, é o Brasil o que mais urgente necessidade tem de reconstituir-se.
Certamente, não será por tais doutrinas e processos, que a reconstituição se fará. Não é chegando lenha ao braseiro que se dominará o incêndio; não será pela desordem, infringindo a Constituição, que se realizará a ordem almejada. O dever máximo do Tribunal é aplicar a lei, e sobretudo a lei das leis, a Constituição.
Se é manifesta a dualidade no Estado do Rio, não há na Constituição e na jurisprudência dos países federados, disposição ou aresto a que se socorra a competência do Supremo Tribunal. Não há maior defeito que o defeito do poder. As decisões inconstitucionais não constituem arestos, não há julgados contra a verdade constitucional. E se tais decisões proferidas sem forma nem figura de juízo, por simples habeas corpus, mais se defronta o propósito do arbítrio. É o que procurarei sempre evitar, no desempenho do alto cargo de que sou investido.
É que essa dualidade não há no caso vertente? Solum quis dicore falsum audiat? Não vale a pena insistir. Tais os fundamentos de ordem jurídica e política também, se quiserem, de minha divergência da maioria do Egrégio Tribunal. Não conheço do habeas corpus, e, vencido, na preliminar, nego-lhe provimento. É o meu voto. - Amaro Cavalcanti, vencido.
Com todo o acatamento à decisão proferida pela maioria do Egrégio Tribunal, não posso, todavia, deixar de ajuntar breve explicação ao meu voto vencido, até mesmo porque já tenho sido voto vencedor em mais de um pedido de habeas corpus que, embora de objeto e condições diferentes, podem contudo ser considerados de espécie análoga à do presente.
Do fato, de o Supremo Tribunal Federal já haver concedido uma ordem de habeas corpus a diversos deputados da Assembléia Fluminense, para que se reunissem sob a presidência de alguns deles, não decorre juridicamente, que a maioria da dita Assembléia se tornasse exclusivamente o poder legislativo do Estado, ficando anulada a maioria da mesma; nem tão pouco, que os atos praticados pelos membros dessa minoria devam ser tidos por este Tribunal, como seqüência irrecusável do habeas corpus concedido.
De forma alguma são estes os efeitos jurídicos do habeas corpus. O objeto desse remédio judicial, a sua própria razão institucional, não pode ser outra, senão garantir aos indivíduos a liberdade pessoal de locomoção, e, no caso sujeito, de entrar sem coação no lugar onde lhes cabia exercer dado direito ou função legítima em direito, e nada mais que isto.
O seu efeito, pois, jamais podia estender-se até ao ponto de investir os indivíduos de uma atribuição nova ou maior, como o de substituírem-se à própria Assembléia no seu todo, nem de tornar válidos, legais, legítimos, quaisquer atos que os deputados protegidos pelo habeas corpus, hajam porventura praticado, no lugar onde se reuniram.
E se os atos em questão forem falsos, ilegais, no fundo e na forma, ou contra a verdade dos fatos, isto não obstante o habeas corpus concedido aos indivíduos, teria a virtude extensiva de sanar tais vícios.
Ninguém ousaria, afirmo-o. Seria sabidamente dar ao habeas corpus uma eficácia estranha, sem base no direito que autoriza a sua concessão. Portanto, e supondo que se não queira recusar a procedência de tão claros conceitos, estou convencido, de que o Supremo Tribunal Federal, não se achava nada obrigado a admitir, como indiscutível, a qualidade de presidente do Estado do Rio de Janeiro, invocada pelo paciente, só porque havia concedido habeas corpus a um certo número de deputados que entenderam reconhecer-lhe essa qualidade.
Pelo contrário, dada a inegável dualidade de candidatos ao aludido cargo, ambos se considerando igualmente eleitos e igualmente reconhecidos, como presidente do dito Estado, pelas duas frações, em que se dividiu a Assembléia Fluminense, e não cabendo ao judiciário a função política de apurar as eleições e de reconhecer, pelo resultado delas, os poderes políticos do Estado; claro é, que o que cumpria fazer, segundo o meu voto, era somente isto: "negar o habeas corpus impetrado, por não caber o seu pedido na competência jurisdicional do Tribunal".
Igual seria o meu voto se o impetrante fosse o candidato Sodré, não obstante o mesmo supor-se com melhor direito, em vista da circunstância de ter sido reconhecido pela maioria da Assembléia do Estado.
Agora parece que também devo acrescentar, como parte final do meu voto, o seguinte: que, verdadeiro como é o princípio de que o Supremo Tribunal Federal, é o juiz de sua própria competência, nas matérias que lhe são sujeitas, precisamente por isso mesmo, deve ser ele o mais cauteloso e prudente no verificar se tais matérias são, realmente, das que a Constituição atribuiu à sua jurisdição privativa, ou se o são da dos dois outros poderes, igualmente independentes.
Está justamente nisto a função máxima do judiciário, como intérprete supremo da Constituição; mas também daí o seu dever de inteira retidão e imparcialidade no definir a esfera própria da sua autoridade. Porquanto nada seria mais censurável do que ver ao poder público, privativamente investido pela Constituição da faculdade de rever os atos dos outros poderes, por motivo da sua inconstitucionalidade, dar, no entanto, ele próprio, o exemplo de agir e decidir com a mesma inconstitucionalidade, isto é, intrometendo-se na esfera inconstitucional dos outros poderes!
A grande vantagem, toda a vantagem prática do nosso atual regimen, político, sabem-no todos, só será possível, uma vez realizada a condição preliminar de que cada um dos poderes funcione sempre dentro da esfera que lhe é própria, nem transpondo o limite dela, nem consentindo em intrusão estranha.
É por isso que os americanos, muito acertadamente, qualificam-no de "regimen de pesos e contrapesos", para significar, que a verdade ou excelência do mesmo só pode existir no equilíbrio dos poderes independentes, mas coordenados (harmônicos, segundo a Constituição Brasileira), cada um na sua própria concha.
Em resumo, são estes os fundamentos do meu voto. - Sebastião de Lacerda, Leoni Ramos, Canuto Saraiva, Pedro Mibielli. Vencidos pelos motivos expostos em sessão, e mais pelos seguintes sugeridos pela redação do acórdão. O impetrante pediu ao Tribunal uma ordem de habeas corpus preventivo em favor do Dr. Nilo Peçanha "para que este possa no dia 31 de dezembro do corrente ano se apossar do cargo de Presidente do Estado do Rio de Janeiro, para que foi eleito por sufrágio popular direto, no dia 18 de julho deste ano, e como tal proclamado pela assembléia legislativa, em sessão realizada no dia 27 do mesmo mês."
O acórdão, no seu dispositivo, depois de apreciar a preliminar, concedeu a ordem impetrada, na forma do pedido, isto é, para que o paciente, "possa livre de qualquer constrangimento, e assegurada a sua liberdade individual, penetrar, no dia 31 de dezembro do corrente ano no Palácio da Presidência do Estado do Rio de Janeiro e EXERCER AS SUAS FUNÇÕES DE PRESIDENTE DO MESMO ESTADO, ATÉ A EXPIRAÇÃO DO PRAZO DO MESMO MANDATO, proibido qualquer constrangimento por parte das autoridades e funcionários estaduais ou federais, e assegurada a execução da ordem pelo juiz federal da seção do Estado do Rio de Janeiro, cumprindo ao mesmo juiz requisitar do poder competente a força que julgar precisa para o cumprimento deste acórdão".
O acórdão, com precisão cuidadosa, assegura ao paciente a liberdade individual com o direito de livre de qualquer coação da parte das autoridades federais ou estaduais, penetrar no palácio da presidência para o efeito de exercer as funções de Presidente do Estado, nem mesmo as instruções ao juiz executor escapou à previdência do acórdão; pois, entendeu a maioria do Tribunal, que elas deviam fazer parte integrante do julgado e por isso autorizou desde logo o juiz executor a requisitar, de quem de direito, a força indispensável para amparar o paciente no cargo, como se acaso pudesse o juiz inferior negligenciar em seu elementar poder.
O habeas corpus, no conceito comum, que é aquele de que, se serviu a nossa Constituição no art. 72, parágrafo 22, é exclusivamente destinado a assegurar a liberdade individual, de cujo uso e gozo dependem virtualmente o exercício de outros direitos e a satisfação de deveres de ordem moral.
Assegurando-se e garantindo-se o exercício da liberdade individual, coata ou em iminência de coação por abuso e ilegalidade de poder, tem-se indiretamente e com eficácia, assegurado e garantido o exercício de outros direitos e a satisfação de deveres morais dela decorrentes, e que sem o uso e gozo da liberdade individual, da liberdade física seriam ilusórios.
Mas, nem de se assegurar indiretamente um outro direito ou dever, decorrente da liberdade individual, se poderá deduzir, com lógica, que por via de habeas corpus se possa assegurar e garantir o exercício de qualquer direito violado, e restaurar em sua plena integridade uma relação jurídica ofendida e perturbada por abuso e ilegalidade de poder, e para cujo efeito, o direito judiciário prescreve fórmulas especiais.
Se por abuso e ilegalidade de poder o direito de propriedade é perturbado, e o proprietário molestado no seu direito de livre uso e gozo da sua propriedade, como na sua liberdade de nela entrar e sair, o habeas corpus não obstante assegurar a liberdade de entrar e sair, o direito de ir e vir não corrige, com eficácia, as perturbações, as espoliações porventura verificadas.
Para esse efeito tem o direito judiciário outro meio de agir, outras fórmulas que, melhor e com segurança absoluta, asseguram e garantem o exercício do livre uso e gozo do direito de propriedade.
Quer isso dizer que, apesar do habeas corpus, facilitar indiretamente o exercício de uma faculdade ou direito, o que ele diretamente garante, em absoluto e com eficácia, é a liberdade individual, a liberdade física.
Desde o Código do Processo Criminal de 1832 até a reforma judiciária de 1871, que o ampliou aos casos de iminência de coação e prescreveu a responsabilidade criminal da autoridade, que houvesse autorizado a coação ilegal, o habeas corpus foi, sempre e sem discrepância, entendido pelos novos jurisconsultos e aplicado pela nossa jurisprudência como uma garantia da liberdade individual exclusivamente.
Assim também o aplicou a nossa jurisprudência nos primeiros anos da República. Porque aliás essa garantia individual, hoje incluída nas garantias que a Constituição oferece a todos os habitantes da República, não é uma criação do novo regimen, em torno da qual se legitimem correntes de opiniões diversas e mesmo opostas umas às outras, pois ela vinha do Império, com todas as suas tradições, com a sua jurisprudência já firmada, através de mais de meio século de existência no seio da nossa legislação processual.
O legislador constituinte, certo receando deixá-la ao arbítrio dos Estados ou contemplá-la na sua legislação processual, com modificações que aniquilassem os seus efeitos, incluiu-a na Constituição Federal no título "Declaração de Direitos", de forma a estendê-la a todos os habitantes do território nacional e a poder ser assegurada originariamente ou em grau de recurso pelo poder federal competente.
Daí expressamente a Constituição estatui no art. 61, que as decisões da justiça local, em matéria de sua competência, não põem termo aos processos se se trata de habeas corpus, previdente o nosso constituinte, convertendo em garantia da liberdade, outrora de natureza processual, uma garantia constitucional, e dessa forma impedindo os Estados da faculdade de alterá-la ou modificá-la, com prejuízo da liberdade individual.
Mas, se as restrições, que porventura os Estados nas suas leis de processo poderiam impor ao habeas corpus, constituíam um perigo para a liberdade individual, não menos perigosas para a ordem nos Estados são as imoderadas ampliações que o Supremo Tribunal Federal tem entendido, em sua sabedoria, emprestar a esse preceito constitucional, e com tal exagero que o habeas corpus, que não é senão um meio judiciário de impedir ou de corrigir abusos da autoridade por ilegalidade de poder, está convertido numa fórmula comum e ordinária de pedir a declaração de outros direitos, que não os concernentes à liberdade individual.
Com ele e por ele, se inventam funcionários públicos no exercício de suas funções; se confere funções políticas e eletivas; e, vai-se mais longe ainda no requinte de bem servir à liberdade; penetra-se no íntimo da consciência humana, e assegura-se com a forma solene de um julgado, a liberdade moral - nas áureas expressões do acórdão - "a atividade moral, puramente abstrata, sem necessidade de ir e vir".
O judiciário, no conceito corrente e vulgar, instituído para declarar o direito ou restaurar uma relação jurídica violada, porque para o juiz o direito é um ato ou fato da vida exterior, que a lei define e garante na forma constitucional, universalmente consagrada "ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", transforma-se, por via de habeas corpus, em tribunal de consciência ao pretender, na nítida locução do acórdão, assegurar também um fenômeno de vida física, que a tanto vale "a atividade moral, puramente abstrata".
Se para quem julga, o direito é a força e a coerção, cuja mais viva expressão reside precisamente, nas sociedades policiadas, na organização sistemática do judiciário; se mesmo o direito subjetivamente considerado, como facultas agendi, na expressão de Chironi e Abello, Dir. Civil, Parte Geral, escapa às cogitações do juiz porque uma faculdade que não emana da lei não é direito aos olhos do julgador, cuja missão é interpretar e aplicar a lei aos casos ocorrentes como e por que processos coercitivos poderá o judiciário assegurar essas situações físicas do foro íntimo de cada um, de que nos dá notícia o acórdão; situações que não se exteriorizam, que não se consubstanciam em atos ou fatos e das quais só poderá ser juiz o seu próprio agente e paciente?
Que direitos são esses, "decorrentes da qualidade de cidadão, cujo desempenho se caracteriza por uma atividade moral, puramente abstrata, sem necessidade de ir e vir", a que alude o acórdão?
Ensinam os manuais de moral e os rudimentares compêndios de direito que "atividade moral, puramente abstrata" é o livre arbítrio.
Um mandado judicial, para garanti-lo, se não fora uma originalidade, seria pelo menos um atentado à consciência de cada um; seria a negação desse estado físico, que não encontra coação no mundo exterior, nem mesmo mera supremacia delirante do judiciário que acorre ao cenário das lutas políticas para dirimir contendas de natureza política, desde o reconhecimento de mesas de assembléias legislativas, até a investidura de cargos políticos originados de eleição popular.
Nem porque o preceito do art. 72, parágrafo 22, da Constituição tivesse deixado de aludir expressamente à liberdade individual se poderá legitimamente concluir que o legislador constituinte quis que todo e qualquer direito fosse, sumariamente, de plano, sem forma e estrépito de juízo, apurado e garantido por via de habeas corpus; porquanto essa garantia não foi uma inovação do regimen, e o citado art. 72, parágrafo 22, numa fórmula feliz, apenas reuniu num único e preciso conceito aquilo que o Código do Processo Criminal de 1832, com a ampliação da reforma judiciária de 1871 já havia consagrado.
Também na sua pátria de origem, como nos Estados Unidos da América do Norte e em todas as Repúblicas Sul-Americanas, o habeas corpus não é destinado senão para garantir a liberdade individual, Blackston, segundo refere Amancio Alcorta - "Garantias Constitucionais", pág. 46, estudando o habeas corpus, em face de seu objeto direto, dá-lhe sete modalidades:
1º habeas corpus ad respondendum; 2º habeas corpus ad satisfaciendum; 3º habeas corpus ad prosequendum; 4º habeas corpus ad tertificandum; 5º habeas corpus ad faciendum; 6º habeas corpus ad deliberandum; 7º habeas corpus ad subjudiciendum.
De todas essas modalidades, segundo o seu objeto, a mais comum é o "subjudiciendum", conhecida sob o nome genérico de habeas corpus, mas em cada uma delas é sempre a liberdade individual que está diretamente em causa. Ampliá-lo a outros direitos que não a liberdade individual e aos que dela decorrem é obra do arbítrio do intérprete e aplicador dos preceitos constitucionais, arbítrio que afeta o prestígio do judiciário e enfraquece a eficácia desta garantia constitucional.
Admita-se, porém, só em benefício da argumentação, que o habeas corpus é remédio também para resguardar o exercício de todo e qualquer direito.
O que é certo e está consagrado pela uniforme e constante jurisprudência deste Supremo Tribunal, é que as questões de natureza política escapam à competência do judiciário, e nada há tão profundamente político, que entenda com a vida política de um Estado ou da União, como a organização das mesas das suas assembléias legislativas e a investidura do chefe do executivo. Intervir o judiciário na organização e funcionamento dos outros órgãos do aparelho governamental quaisquer que sejam a forma judicial empregada e os motivos que provocaram a sua interferência, é a subversão do regimen que assenta sobretudo na independência e harmonia dos denominados poderes políticos; é a ditadura fria do judiciário, que, a título de haver proferido uma decisão, de sua natureza política, investe contra a autonomia dos Estados, arrogando-se competência que a Constituição lhe não confiou, e usurpando funções privativas dos outros poderes.
Se é "irrisório", como pretende o acórdão restringir o habeas corpus, ao seu velho, tradicional e universal conceito, de exclusivamente com ele e por ele assegurar-se a liberdade individual e o direito de ir e vir, que lhe é inerente, não se poderá, porém, em sã consciência, negar que o ponto de vista dos votos vencidos, se não tem o mérito das novidades atraentes, vale ao menos pela sua tradição; pelo respeito devido às atribuições cometidas pela Constituição aos outros poderes políticos; e sobretudo pelo espírito de ordem que ele revela, afastando discretamente da serenidade impassível do judiciário as lutas partidárias apaixonadas, que têm outro campo de ação mais vasto.
OPÇÕES DE NAVEGAÇÃO NO MESMO TEMA:
(Fonte: links do site www.casaruibarbosa.gov.br)