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Partido comunista - Habeas corpus requerido para assegurar aos dirigentes da associação civil o direito à continuação desta, para outros fins que não os partidários - Atos do Governo conseqüentes ou relacionados com o cancelamento do registro decretado pela justiça eleitoral
A competência desta justiça se restringe à matéria eleitoral - Causas conexas - Impossibilidade de admitir tal extensão, para elidir a competência constitucional do Supremo Tribunal, no conhecimento de habeas corpus e mandado de segurança contra atos do Presidente da República - Habeas corpus e mandado de segurança - Conceituação dos dois institutos, em face da atual Constituição -
A pretensão dos pacientes não pode ser resolvida por habeas corpus, senão por mandado de segurança.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator) - Requererem os dirigentes do Partido Comunista Brasileiro o presente habeas corpus, alegando: 1º - que estão impedidos de entrar e sair da sede central e comitês locais do mesmo Partido pela Polícia, de ordem do Sr. Ministro da Justiça; 2º - que a Polícia, ainda antes de publicado o acórdão do Superior Tribunal Eleitoral que cassou o registro do Partido, invadiu-lhe as sedes, expulsando os funcionários que lá se achavam, apoderou-se das chaves, apropriando-se de máquinas de escrever, arquivos, fichários, livros, documentos, etc.; 3º - que o Partido se organizou como sociedade civil devidamente registrada no cartório competente; 4º - que a cassação do registro partidário não suprime a sociedade civil, que subsiste até que seja dissolvida regularmente no caso de lhe atribuírem fins ilícitos, nos termos do art. 141, § 12 da Constituição; 5º - que o julgado eleitoral, ainda sujeito aos recursos previstos em lei, não se estende à associação civil, porque restrito ao partido político; 6º - que os pacientes, como diretores da sociedade civil, estão impossibilitados de exercer atos relativos à guarda e disposição dos bens sociais e do patrimônio do ente provado, dando assistência aos interesses próprios da sociedade e de terceiros, comprometidos uns e outros pelos atos da Polícia; 7º - que, mesmo quando cancelado pela Justiça o registro da sociedade civil, entraria esta em liquidação para ser dado destino ao seu patrimônio, nos termos do artigo 22 do Código Civil e na conformidade dos Estatutos que, prevendo a impossibilidade de serem realizados os objetivos do Partido, atribui à assembléia geral a disposição dos bens sociais.
O pedido, nos termos expostos, está assim sintetizado: "Impedidos estão os diretores do Partido Comunista do Brasil de entrarem e saírem (direito de locomoção) relativamente às sedes da sociedade civil em todo o país e conseqüentemente de exercerem a guarda e conservação dos bens, garantia do crédito de terceiros, do uso dos documentos e da convocação da Assembléia geral, determinada pelos Estatutos, para resolução quanto ao patrimônio".
Oficiei ao Sr. Ministro da Justiça que me enviou as minuciosas informações que passo a ler: (lê).
É o relatório.
Antecipação ao voto
O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator) - Sr. Presidente, antes de ler o meu voto, quero referir-me à preliminar levantada, da tribuna, pelo ilustre advogado. Na verdade, não se trata de preliminar, no sentido de que possa influir ou prejudicar o julgamento do mérito.
É, antes, uma alegação, uma argüição, uma indagação do mérito, porque, se o governo não pode praticar os atos trazidos ao conhecimento do Tribunal, porque esses atos se referem à execução da decisão e essa execução - do ponto de vista do advogado, só competiria ao Tribunal Superior Eleitoral, que não poderia delegar atribuição ao Poder Executivo, o que daí resulta é que esses atos são ilegais, do ponto de vista da argüição, porque praticados pelo Poder Executivo, por delegação do Judiciário, o que seria inconstitucional. Mas esta ilegalidade seria um dos aspectos da apreciação do mérito do caso, se fosse possível examiná-lo, por habeas corpus.
Em certo trecho do meu voto, terei oportunidade de me referir à circunstância de não se tratar de ato de execução ordenada pelo Tribunal Superior Eleitoral, caso que seria da competência dele mesmo, mas sim de atos praticados pelo Ministro da Justiça na preservação do julgado ou na execução dele, conforme se entenda.
Isto revela, desde logo, a separação existente entre esses atos e a execução não ordenada pelo Tribunal Superior Eleitoral, permitindo, por isso mesmo, a competência do Supremo Tribunal Federal para o conhecimento do pedido.
Ditas estas palavras, passo à leitura do meu voto.
VOTOS
O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator) - Como se viu da exposição, o objeto de habeas corpus é assegurar aos pacientes, como dirigentes do Partido Comunista, o direito de continuarem à testa da sociedade civil que eles entendem não dissolvida pela cassação do registro do Partido, dispondo, para os fins, da administração da sociedade sobrevivente das sedes respectivas, móveis, livros, arquivos, etc..
O cancelamento do registro partidário, argumenta o impetrante, cinge-se ao Partido, cujo funcionamento ficou proibido, proibição que teria de restringir-se às suas relações com a Justiça Eleitoral, não podendo concorrer a eleições, registrar candidatos, etc..
Mas, fora dessa interdição concernente ao Partido, nenhuma outra pode impor o Governo, porque já então desnecessária a excedente do julgado eleitoral, cuja disposição, limitada constitucionalmente à matéria eleitoral, não alcança outros aspectos, ainda que conseqüentes, mas relativas à pessoa privada da associação.
A primeira indagação que ocorre, e aliás suscitada nas informações ministeriais, é a da competência.
As causas que sobrevenham ao cancelamento de um registro de Partido serão da competência da própria Justiça Eleitoral? Ou improrrogável se deverá entender tal jurisdição para as questões derivadas ou complementares que não sejam de natureza propriamente eleitoral?
Posta a questão no plano das disposições processuais, tais causas, oriundas ou acessórias da principal, seriam da competência eleitoral. A questão de saber se o julgado eleitoral abrange a sociedade civil que servia de suporte ao Partido ou se, nos termos do julgado, está proibido o funcionamento de ambas as entidades e bem assim outras controvérsias que possivelmente hajam de surgir sob a forma de demandas, ainda que alheias à matéria propriamente eleitoral, mas vinculadas de certo modo à decisão, estaria resolvida no plano comum por aplicação das regras conhecidas da continentia causarum.
É sabido que a competência por conexão se funda nas vantagens da economia processual e, sobretudo, na conveniência de prevenir decisões contraditórias, daí provindo a cumulação no juízo da causa principal de todas as demandas que com ela mantenham laços estreitos de dependência ou conexão - in connexis idem est juditium.
Uma das aplicações mais conhecidas dessa regra é da competência para a execução que pertence ao mesmo juiz da ação.
Vejamos agora se é possível fazer aplicação desses princípios para concentrar na Justiça Eleitoral as causas conexas com o seu julgado, ou em que termos pode ser admitida tal extensão.
A Justiça Eleitoral já reivindicou para si mesma a execução das suas decisões. A Constituição é omissa no tocante a essa atribuição; mas tendo instituído como Justiça autônoma aquela jurisdição, não seria possível admiti-la como semi-plena, mutilada no que é essencial à eficácia mesma da jurisdição.
Se é possível a cognição sem o poder correlato de passar à execução, do que há exemplos conhecidos na jurisdição dos prud'hommes e probi viri e, entre nós, até a organização definitiva da Justiça do Trabalho, no funcionamento das Juntas de Conciliação e Julgamento, cuja execução era atribuída às Justiças comuns, essa mutilação só pode existir quando expressa na lei ou com base no Estatuto fundamental.
A regra é a execução no mesmo juízo da cognição. A coerção, diz Mortara, é um efeito da jurisdição. De outro modo seria ilusória a jurisdição conferida - Cui jurisdictio data est, e a quoque concesso esse videtur, sine quibus jurisdictio explicari non potest.
Compreende-se assim que a execução das suas próprias decisões esteja na competência da Justiça Eleitoral, por aplicação do princípio, não contrariado nem explícita nem implicitamente pela Constituição, de que a execução é inerente às jurisdições regulares.
No caso em apreço, contestam os impetrantes tratar-se de meros atos de execução, senão de atos desnecessários ou excedentes do necessário à execução do julgado.
A execução dada pelo Egrégio Superior Tribunal Eleitoral consistiu, segundo é notório, e, aliás, o confirma o nobre Ministro da Justiça, na comunicação feita ao Governo por ofício do eminente ministro ora na presidência daquela suprema Corte eleitoral.
Os atos de execução de que se queixam os pacientes, sob a argüição de excessivos ou abusivos, não são, pois, atos de execução ordenada por aquele Tribunal.
O saber se esses atos estão virtualmente contidos no julgado, se atingida por este foi também a associação, se a dissolução desta está automaticamente decretada, pelo julgado eleitoral, se os fins da associação são os mesmos fins do Partido ou se, ao inverso, possui a associação outros fins, como seriam, por exemplo, a manutenção de escolas, hospitais, assistência médica, etc., para os seus associados são aspectos que formam uma demanda à parte, ainda que possivelmente conexa com o julgado sobre a cassação do registro do Partido, cassação que acentuam as informações ministeriais, se baseou no inciso 13 do art. 141 da Constituição, abrangendo o partido e, por igual, a associação e havendo ambos por ilícitos ou nocivos à coletividade.
É possível que os atos impugnados como excedentes do julgado eleitoral digam respeito à sua execução como matéria nele virtualmente contida; mas como não são medidas adotadas em execução ordenada pelo próprio Tribunal Superior Eleitoral, caso em que a este mesmo competiria conhecer, pelos recursos e meios próprios, dos excessos ocorridos na execução, e exame da argüição compete à Justiça que for competente para conhecer dos atos da autoridade apontada como coatora.
A Constituição designa o Tribunal competente para os atos do Presidente da República e dos Ministros de Estado quando impugnados por via do habeas corpus e do mandado de segurança.
Será possível arredar a competência constitucional para admitir a extensão da eleitoral fundada no princípio da continência?
A Justiça Eleitoral, como toda Justiça especial, tem somente as atribuições especificadas, não comportando extensão ou ampliação.
Sua competência se limita à matéria eleitoral, locução de seu natural restrito, a ser entendida no sentido da aplicação das leis eleitorais nos atos administrativos a seu cargo e na solução das controvérsias surgidas dessa aplicação.
É certo que na solução das espécies a Justiça Eleitoral aplica os Códigos comuns, de processo civil e criminal, na administração dos remédios adequados ou na repressão dos crimes de sua alçada; mas essa possibilidade decorre do expresso na Constituição quando esta lhe atribui conhecer de habeas corpus e de mandados de segurança e bem assim processar e julgar as infrações eleitorais.
É bem de ver que esse processamento não é matéria eleitoral, visto como não se prescreveu rito peculiar aos mandados de segurança e habeas corpus em matéria eleitoral; mas por isso mesmo, decorre a utilização dos meios de direito comum da atribuição expressa para conhecer de tais remédios.
Outro tanto ocorre ao decidir sobre certas matérias como no caso de se controverter a nacionalidade de alguém que pretenda alistar-se como eleitor ou de inscrição de candidato que se argúa de inelegível: esses pressupostos, que envolvem problemas da alçada em princípio das vias comuns, exigindo a prova da aquisição da nacionalidade brasileira ou, ainda, no registro dos partidos, a prova da constituição regular e do registro no cartório competente da associação que pretenda ser registrada como partido político - tais pressupostos, ainda que assentados em preceituação diversa ou configurando questões não propriamente eleitorais, entram todavia na competência especial que, de outro modo, estaria entravada ou entorpecida se houvesse de sobrestar no exame desses aspectos até que sobre eles se pronunciasse a Justiça comum.
Tudo isso é matéria eleitoral porque incidente no julgamento dos casos eleitorais da competência daquela Justiça.
As causas conexas são, porém, demandas novas, ainda que oriundas ou conseqüentes do julgado.
Não sendo possível classificá-los como matéria eleitoral, só pelo laço da conexão seria admissível prendê-las à causa principal.
Observa-se nas informações ministeriais que a própria Constituição admite a continência quando atribui àquela Justiça conhecer dos crimes comuns conexos com as infrações eleitorais.
É exato; mas não será uma exceção?
A velha máxima inclusio unius alterius exclusio não é indefectível, comportando restrições na sua aplicação.
Mas no caso é de ser, a meu ver recebida, porque a Justiça Eleitoral, como toda jurisdição especial ou específica, é de competência striti juris, não ampliável por interpretação.
Se a Constituição estabelece que essa Justiça se limita a matéria eleitoral e se ela mesma lhe atribui, em matéria penal o conhecimento dos crimes comuns conexos com os eleitorais, o que daí se deve concluir é que traçou uma regra e abriu um exceção, não sendo lícito ao intérprete transformar em regra a exceção.
Não sendo possível, segundo me parece, alargar o âmbito da matéria eleitoral, além do expresso na Constituição, só por aplicação do disposto no art. 138 do Código de Processo se poderia admitir a competência eleitoral para as causas conexas.
Vale dizer que o assento dessa extensão não seria a Constituição, mas a preceituação processual, pois que, como disse, a inclusão do conexo com o eleitoral só seria possível com base na lei fundamental se possível fosse dar à locução matéria eleitoral uma definição extensiva, fora da hipótese mencionada das infrações penais.
Posta a questão em termos processuais ou meramente legais, a admissão do foro por conexão encontraria obstáculos na Constituição quando esta atribui a este Supremo Tribunal e ao Federal de Recursos o conhecimento dos habeas corpus em que a autoridade coatora seja o Presidente da República ou um Ministro de Estado e bem assim dos mandados de segurança requeridos contra atos dessas altas autoridades.
O juízo constitucional do habeas corpus quando o apontado coator é o Presidente da República ou um dos seus ministros, é o Supremo Tribunal; o juízo constitucional do mandado de segurança requerido contra atos dessas mesmas autoridades é o Supremo Tribunal ou, no tocante aos atos dos Ministros do Presidente, o novo Tribunal a ser instalado.
O chamamento a Juízo dessas autoridades, em tais processos, firma, rationi numeris, a competência constitucional desses tribunais, competência indeclinável, por que expressa na Constituição e que só encontra limite nos casos eleitorais, de conceituação restrita, como já vimos, abrindo-se já então a competência da Justiça Eleitoral pelo seu órgão superior.
A extensão do foro eleitoral por aplicação do Código de Processos importaria em subtrair ao conhecimento do Supremo Tribunal os habeas corpus e mandados de segurança em que estivesse em causa a autoridade funcional do Presidente da República.
Seria preciso admitir que, mesmo nos casos alheios à matéria eleitoral e para os quais a Justiça respectiva fosse em princípio incompetente (incompetência que se pressupõe confessadamente na continentia causarum), nem sempre seria competente o Supremo Tribunal como juízo originário e necessariamente privativo para julgar os atos do Presidente da República.
Ocorre-me rememorar o que sucedeu com o disposto no art. 10 da Lei n. 221 de 1894. Permitiu essa lei que nas causas propostas perante juízes locais, se o réu não opusesse a declinatória, ficasse prorrogada essa jurisdição ainda que da competência federal a demanda.
Essa prorrogação foi julgada inadmissível pelo Supremo Tribunal, até que a Lei n. 1939 de 1908 revogou o dispositivo inconstitucional da Lei n. 221.
Era inadmissível o foro de jurisdição prorrogada porque as espécies da competência da Justiça Federal, ratione materias ou ratione personarum, estavam compendiados na enumeração constitucional, não estando ao alcance do legislador atribuí-los à outra Justiça.
Ainda que no plano federal as duas competências em exame, a solução não pode ser outra: a Constituição, atribuindo ao Supremo Tribunal o exame dos atos do Presidente da República e de seus auxiliares imediatos nos processos de habeas corpus e de mandado de segurança estabelece uma regra geral que não pode admitir exceções fundadas na lei ordinária.
Não será impossível que, no exame dos casos concretos, esteja em causa ato do Presidente da República ou de Ministro de Estado, de natureza eleitoral, e que o pedido venha endereçado ao Supremo Tribunal, competindo-lhe, já então, se entender que a matéria é eleitoral, não conhecer do pedido, que será da alçada do Superior Tribunal Eleitoral.
Se verifica, entretanto, que a matéria não é eleitoral, porque já esgotada a jurisdição eleitoral no seu pronunciamento e por se não tratar de atos de mera execução do julgado, mas sim de demanda, ainda que oriunda ou conseqüente, deve, a meu ver, conhecer do pedido. Eis porque conheço do presente habeas corpus.
A hipótese não é de habeas corpus, mas de mandado de segurança.
O que se reclama não é somente o direito de entrar e sair da sede da agremiação partidária, mas de exercer atos de administração da sociedade civil, cujo funcionamento está sendo reivindicado, com os meios necessários, ainda que proibida a prática de atos partidários.
É para que se declare subsistente a associação civil remanescente no tocante à disposição dos seus haveres que se pede o habeas corpus, remédio manifestamente inidôneo para os direitos que se dizem violados pelo argüido excesso de autoridade.
O habeas corpus protege a liberdade de locomoção e esgota-se na proteção dessa liberdade.
Ao tempo da jurisprudência extensiva que atribuía ao velho writ, na falta de outro remédio adequado, a virtude de alcançar outros direitos, pelo argumento de que estaria subordinado o seu exercício àquela liberdade - condição, seria possível utilizá-lo para atingir ao que então se chamava com Pedro Lessa - o direito - escopo.
Ainda assim, já àquele tempo, registraram-se casos em que o Supremo Tribunal o declarou inidôneo para anular v. gr. o fechamento de um estabelecimento comercial ou, de um modo geral, para garantir o exercício da profissão comercial (Rev. Do Supr. Tribunal, volumes 46, 22 e 23), e ainda para resolver questões de direito civil (Ibidem, vol. 41, pág. 53).
Criado o mandado de segurança, que tem nessa jurisprudência as suas nascentes, tornou-se necessário distinguir as hipóteses.
A liberdade de locomoção está necessariamente sempre pressuposta, tão certo é que dela precisa o funcionário para ir ao seu emprego, o operário para ir à oficina, o comerciante ou industrial para o desempenho das suas atividades, etc..
Mas não estará nesse como em tantos outros casos imediatamente comprometido o direito de ir e vir senão o exercício da função, profissão ou atividade lícita se queira exercer e para cuja proteção se peça o amparo judicial.
A livre locomoção se define pelo direito de ir e vir, entrar e sair, ficar onde está - jus manendi, ambulandi, eundi ultro citroque.
É uma liberdade elementar ou primária, que pelo habeas corpus se assegura ao indivíduo sem necessidade de indagar qual o fim lícito que pretenda ele dar a essa liberdade. Se, porém, ele precisa mover-se para desempenhar um emprego que lhe tiraram ou para exercer dada atividade econômica ou para que cesse um obstáculo criado a essa atividade visando-o compelir a pagar certo imposto que tem por ilegal, o direito que domina o quadro relega para um segundo plano a livre locomoção, que entrará na proteção assegurada como liberdade - condição para o exercício postulado, que será um direito, não do indivíduo propriamente, mas do funcionário, do industrial, do comerciante, do contribuinte.
A atual Constituição exagera ainda mais do que a de 34 o parentesco do mandado de segurança com o habeas corpus. Define-o por exclusão deste, acentuando-lhe o traço de habeas corpus civil que não prosperou sob a Constituição de 34, tanto que a Lei n. 191 de 1936 pôde traçar-lhe o rito abandonando o figurino processual do habeas corpus, que parecera fixado constitucionalmente e adequando-o à apuração mesma do direito postulado, que se quereria "certo e incontestável", com a audiência necessária da pessoa de direito público interessada, condições constitucionais que contra-indicavam o ritual do habeas corpus.
A correlação entre o habeas corpus e a proteção que por ele se dispensava a direitos provados de plano e que teriam, como quaisquer direitos, na livre locomoção uma condição elementar do seu exercício, existia àquele tempo; mas não havia razão, nem em 34, como ainda agora, para mantê-la na definição do novo instituto, que se rege por outros princípios e segue forma processual muito diferente.
A aproximação constitucional dos dois institutos estará talvez concorrendo para a confusão que se vai notando na solução de casos em que não tem sido feita a necessária distinção, com esquecimento da jurisprudência que já deixara esclarecidos critérios de orientação para distinguir das hipóteses de habeas corpus as de mandado de segurança.
Permito-me recordar que, quando Juiz Federal, em Fevereiro de 1935, no julgamento de um habeas corpus que me fora requerido para que o paciente pudesse entrar e sair dos navios ancorados no porto, no exercício de sua profissão de fornecedor de gêneros para os estoques de bordo (Schipchandler) contra o ato das autoridades aduaneiras que lhe vedaram esse livre ingresso, estabelece a distinção, julgando inidôneo o habeas corpus, porquanto o direito violado e que se pretendia restaurar era o da profissão ou atividade exercida pelo paciente, e não o de livre locomoção só secundariamente comprometido, por via de conseqüência da proibição imposta ao agente comercial.
A Corte Suprema confirmou unanimemente essa decisão.
Em outro caso, também de habeas corpus requerido para um capitão do Exército classificado em guarnição de categoria inferior àquela a que se julgava com direito, decidiu a Corte Suprema que não estava em jogo somente a liberdade de locomoção mas precipuamente o direito de não ser classificado em determinada guarnição, hipótese de mandado de segurança.
A liberdade individual compreende várias modalidades.
É a segurança individual com as garantias pressupostas constitucionalmente a bem da defesa; a liberdade de locomoção, a que servem essas garantias de índole processual e particularmente o habeas corpus; a liberdade corpórea, que consiste na integridade física do indivíduo e no direito de não ser molestado no seu corpo, modalidade que, embora não figure no texto, deu origem àquele writ, em cuja denominação subsiste e, se violada, com ou sem detenção, não encontraria na Constituição outro remédio senão o habeas corpus; a inviolabilidade do domicílio, definido este como habitat do indivíduo e sua família, com exclusão dos estabelecimentos abertos ao público, inviolabilidade que é um prolongamento da liberdade de locomoção sob a forma de estar em sua casa sem ser molestado pela intromissão arbitrária da autoridade, fora das ressalvas expressas, configurando-se ainda aí uma hipótese que seria de habeas corpus; a liberdade de associação, que se traduz no direito assegurado aos indivíduos de porem em comum, no interesse de um fim político (e tais são os partidos), religioso, recreativo, beneficente, etc., os seus bens, atividades, trabalho, etc., objetivo que transcende do habeas corpus que seria inidôneo para assegurar o direito de associar-se, ou de ser conservado no estado de associação; a liberdade de ensino, a de imprensa, etc., as liberdades econômicas que se definem pela liberdade de trabalho, de indústria e comércio, pressupondo no paciente da restrição impugnada o trabalhador, o industrial, o comerciante... São hipóteses de mandado de segurança.
Nestes termos, indefiro o habeas corpus, por incabível.
O Sr. Ministro Lafayette de Andrada - Sr. Presidente, dou-me por impedido neste caso que, de certo modo, envolve a decisão tomada pelo Superior Tribunal Eleitoral, na qual tomei parte.
O Sr. Ministro Ribeiro da Costa - Sr. Presidente, também me sinto impedido neste habeas corpus, uma vez que funcionei como juiz do Superior Tribunal Eleitoral e ali dei meu voto no sentido de não se cancelar o registro do Partido Comunista, e a medida que ora se pede tem direta ligação com a natureza de voto que proferi.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães - Sr. Presidente, não encaro, na presente hipótese, continência de causas.
A causa ora submetida ao julgamento deste Egrégio Tribunal é diversa da que foi considerada pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Esta é conseqüência daquela, mas a conseqüência não importa em que as causas sejam continentes. Elas são essencialmente diversas.
No Tribunal Superior Eleitoral cassou-se o registro do Partido Comunista, do órgão político; discute-se, agora, nesta causa, a legalidade do fechamento da sociedade civil.
As causas, portanto, são diversas. Não há entre elas continência e, assim, estou de acordo com o Sr. Ministro Relator, quando afirmou a competência deste Tribunal para conhecer do pedido de habeas corpus.
O Sr. Ministro Orozimbo Nonato - V. Ex. não encontra conteúdo eleitoral na presente hipótese.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães - Exatamente.
O que se discute nesta causa é a legalidade do fechamento da sociedade civil.
O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator) - Mas esta causa é nascida da outra.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães - Sim, nascida da outra, é conseqüência da outra, mas não há continência entre ambas.
O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator) - São causas conexas, em virtude do art. 102.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães - Acho que não há lugar, neste caso, para conexão, para continência. Os casos são diversos, embora em conseqüência de outro.
A ordem de habeas corpus destina-se a tutelar a liberdade de locomoção quando a puser em perigo o abuso ou a ilegalidade do poder.
Nesta causa, porém, não se defende a liberdade de locomoção; discute-se a legalidade do fechamento de uma sociedade civil.
O advogado dos pacientes, da tribuna, preocupou-se apenas com a situação da sociedade civil, discutiu tão somente esta matéria e invocou mesmo, para fundamento da sua pretensão o disposto no § 12 do art. 141, relativo à liberdade de associação.
Não se discute, pois, liberdade de locomoção, mas discute-se liberdade de associação. O que querem os requerentes, a pretexto de um habeas corpus, é recuperar a administração do patrimônio da sociedade.
É isto o que se procura por esta via indireta. Demonstrou muito bem o Sr. Ministro Relator que o habeas corpus não é meio idôneo para este fim.
Embora reconheça o impetrante que a sociedade é de fins ideais, e que ela se destina a um fim político, salienta ele mesmo, o advogado impetrante, que o que se procura é defender um situação patrimonial, ferida, segundo ele afirma, pelo ato do Ministro da Justiça.
Evidentemente, não é possível que questões patrimoniais sejam discutidas no processo do habeas corpus.
É este, a meu ver, Sr. Presidente, o fundamento, aliás invocado pelo Sr. Ministro Relator, que me leva também a negar a ordem de habeas corpus.
O Sr. Ministro Edgard Costa - Sr. Presidente, não estando em jogo, exclusivamente, a liberdade de locomoção, mas sendo esta um meio para atingir-se outra finalidade, qual a de reaverem ou entrarem na posse os pacientes do patrimônio da associação civil, que o impetrante entende não dissolvida, acompanho o voto do Sr. Ministro Relator, considerando, com S. Excia., que o habeas corpus não é o meio cabível na hipótese, pelo que indefiro o pedido.
O Sr. Ministro Goulart de Oliveira - Senhor Presidente, reconhecida com os fundamentos dados pelo Sr. Ministro Relator, a competência do Supremo Tribunal para conhecimento da hipótese e como a questão do direito de ir e vir surge apenas para disparçar a questão principal, que é o asseguramento do funcionamento da sociedade civil, acompanho o voto de Sua Excia.
O Sr. Ministro Orozimbo Nonato - Sr. Presidente, o eminente Sr. Ministro Relator dedicou a primeira parte do seu erudito voto à explanação de uma tese interessante, a de se saber se, no caso, cabe competência ao Supremo Tribunal Federal para examinar a legalidade do ato do Sr. Ministro da Justiça. S. Excia. desenvolve curiosa análise do delicado problema, que se deve deslocar do plano do direito judiciário para o constitucional.
O juiz da ação é o da execução, mas, no caso, sobre não se tratar, propriamente, de "processo de execução", faz-se mister não retirar ao Supremo Tribunal a competência de examinar a ilegalidade ou inconstitucionalidade de ato do Presidente da República.
Se o aresto forte no qual o Exmo. Sr. Ministro da Justiça praticou os atos contra que se irrimina o impetrante, deriva de uma justiça autônoma, certo é que não desvelam conteúdo especificamente eleitoral e a aplicação dos princípios processuais remataria em cercear atribuição de alta relevância deste Supremo Tribunal.
A Justiça Eleitoral é autônoma; suas decisões são, em tese, irrecorríveis. A irrecorribilidade é a regra; a recorribilidade, a exceção, de modo que, ainda por esse particular, devia competir a execução de seus julgados àquela justiça.
Mas o eminente Sr. Ministro Relator demonstrou que a aplicação pontual desse princípio conduziria à mutilação do poder do Supremo Tribunal e derivou, então, para o plano constitucional o problema da competência. A meu ver, a conclusão foi feliz.
É preciso saber o reflexo desses atos, e a conclusão do julgado tem conteúdo puramente eleitoral. Se não tem, como não teve, no caso, essa regra é inaplicável, sob pena de subverter o próprio sistema constitucional da hierarquia dos poderes.
Firmada a competência do Supremo Tribunal, convém saber se o caso comporta o remédio do habeas corpus.
Por uma tradição ancianíssima em nosso Direito, o habeas corpus foi quase sempre considerado com medida tutelar do direito de ir e vir, da liberdade de locomoção.
A liberdade de ir e vir, a liberdade física, a liberdade de locomoção encontrou nesse remédio presentâneo seu principal paládio, sua tutela mais enérgica e eficaz. Essa tradição passou do Império para a República.
A Constituição de 1891 o conceituou, porém, em termos incircunscritos; - o writ da liberdade se daria sempre que ocorresse ilegalidade ou abuso do poder. O texto era amplíssimo.
O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator) - Não falou em liberdade de locomoção.
O Sr. Ministro Orozimbo Nonato - Exatamente. Pois, ainda assim, o conceito tradicional resistiu e a generalidade dos termos do preceito constitucional sofreu o encurtamento derivado da índole do habeas corpus.
Juízes e juristas eminentes, como João Barbalho, Lúcio Mendonça, Murtinho, sempre entenderam que esse remedius iuris destinava-se a proteger apenas a liberdade de ir e vir, a liberdade de locomoção.
Mas, trabalhando pela palavra apostólica de Rui Barbosa e, no Supremo Tribunal, entre outros pela eloqüência de Pedro Lessa, o habeas corpus, entre nós, tomou proporções amplas, dilargando-se, consideravelmente, a sua irradiação.
E essas proporções de tal sorte se ampliaram, que, se não me engano, Carlos Maximiliano, insuspeito de pretender amesquinhar o writ da liberdade, falou em desmoralização da medida usada com amplitude além da marca.
A reforma Artur Bernardes voltou à limitação tradicional, e o mesmo ocorre nas Constituições de 1934 e 1937 e, agora, na atual. Todas elas se referem à liberdade de locomoção, puramente.
É exato que essa liberdade de ir e vir aparece às vezes, como condição do uso de todas as outras. Sem ela não se compreenderia o exercício de nenhuma outra, mas o habeas corpus não pode ser mais, como foi, na Constituição de 1891, o writ incircunscrito da liberdade, e entendida como direito de praticar tudo aquilo que a lei não veda, no conceito famoso de Montesquieu; porque a esse entendimento se opõe a letra da lei e, mais do que isso, a sistemática do nosso Direito.
Tanto assim que o encurtamento do remédio constitucional não provocou, como observa, creio, o Sr. Espínola Filho, a reação dos liberais.
É que, àquele tempo, não havia remédio outro, para proteção de outras liberdades, para assegurar, de pronto, a prevalência de direito certo, líqüido e incontestável. Inexistia o mandado de segurança, não se reconhecia, às vezes, a possibilidade do remédio possessório contra atos da Administração.
E já agora, não é necessário dar ao habeas corpus o grandeamento que tinha outrora. E situando-o como tutela do direito de ir e vir, não se sacrificam, dada a confluência de outros remédios, outros direitos e liberdades.
No caso dos autos, o impetrante, em nome do Sr. Senador Luis Carlos Prestes e dos Senhores Deputados Maurício Grabois e João Amazonas, pede habeas corpus para que eles possam entrar e sair na sede do seu Partido, cuja atividade política o E. Tribunal Superior Eleitoral, acaba de impedir.
Entende o impetrante que esse direito não lhes pode ser cerceado porque, a par do órgão político, existia a sociedade civil, com deveres e direitos, obrigações, compromissos, irremediavelmente comprometidos, se o Governo persistir na sua atitude que ele caracteriza como constrangimento ilegal.
Mas, a argüida ilegalidade ou inconstitucionalidade pode encontrar correto em habeas corpus?
A resposta negativa impõe-se irresistivelmente. Se a liberdade de locomoção é reclamada não por si mesma, senão para o logro de outros direitos que se pretende exercer, de ordem patrimonial e correlatos, não cabe o habeas corpus.
Já o ensinava, em seu prestantíssimo livro sobre o mandado de segurança nosso eminente colega Sr. Ministro Castro Nunes. Não pode o habeas corpus tomar o espaço destinado ao mandado de segurança.
É o caso dos autos, sem tirar nem por. O que se quer é que os pacientes possam entrar e permanecer livremente na sede do seu Partido, de inscrição cancelada pelo Tribunal Superior Eleitoral, tirando-se ao alvo, não de resguardar a liberdade de ir e vir, senão de exercer direitos de outra ordem e de caráter patrimonial.
A pretensão não se pode conter nos encerros do habeas corpus, pelo que também indefiro o pedido.
O Sr. Ministro Annibal Freire - Sr. Presidente, indefiro o pedido, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
O Sr. Ministro Barros Barreto - Sr. Presidente, o habeas corpus é meio manifestamente inidôneo para a finalidade visada pelos requerentes. Isto demonstrou o Sr. Ministro Relator.
Indefiro o pedido.
O Sr. Ministro Laudo de Camargo - Reconhecendo a competência do Supremo Tribunal, indefiro o pedido, porque não se trata da liberdade pura e simplesmente de usar do direito de locomoção, mas, e principalmente, do exercício de certas atribuições na direção de uma sociedade.
DECISÃO
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: negaram a ordem, unanimemente.
Impedidos os Srs. Ministros Ribeiro da Costa e Lafayette de Andrada.
ACÓRDÃO
Vistos. Acorda o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, negar a ordem, unanimemente, pelos fundamentos constantes dos votos manifestados, que integram o acórdão.
Supremo Tribunal Federal, 28 de Maio de 1947. - José Linhares, Presidente. - Castro Nunes, relator.
OPÇÕES DE NAVEGAÇÃO NO MESMO TEMA:
(Fonte: links do site www.casaruibarbosa.gov.br)